sábado, 31 de dezembro de 2011

Uma questão de pílula

Há uma frase atribuída a Chico Xavier que diz que para conseguirmos algo que nunca tivemos, devemos fazer algo que nunca fizemos. A frase é de uma sabedoria simples, dessas que a gente esquece na confusão louca do nosso dia a dia, e sempre acaba achando mesmo que conseguiremos algo diferente repetindo nossos padrões doentios. Esta frase do Chico me lembra outra, atribuída a Einstein que diz que loucura é fazer a mesma coisa repetitivamente, e esperar resultados diferentes. Outra obviedade que nos escapa na nossa insistente tendência à inércia do trilhar caminhos já percorridos.

A questão é que sempre chega um momento em que uma mudança é inevitável. Você não irá necessariamente morrer se não mudar, mas certamente vai conhecer algo pior que a morte, que é a frustração, ou seja, ser pouco mais (ou menos?) que um morto-vivo.

Contudo, um ponto que me intriga é a multiplicidade de opções que muitas vezes se descortina. Não é uma simples opção maniqueísta entre uma pílula vermelha ou uma azul - que invariavelmente, pelas características de cada qual, já evidenciam qual a que deve ser cobiçada - mas uma infinidade de matizes que não necessariamente se mostram melhores ou piores entre si. Além do mais, algumas escolhas são únicas e definitivas, não comportam o meio termo. A água precisa ferver para o café fazer a infusão e o congelador precisa manter uma temperatura abaixo do de 5oC para que o sorvete não derreta. Ou seja, para algumas coisas existe um ponto ótimo. O difícil, muitas vezes, é saber quais são essas coisas e, além disso, quais seus pontos ótimos. Pensando numa resposta para esse problema, imediatamente me recordo da "Prece da Serenidade", muito utilizada pelos álcóolicos/narcóticos anônimos. É uma prece que pede a Deus "a serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguir uma das outras". Assim, tudo se resume a uma questão de sabedoria.

Sabedoria não é só intelecto, entendo que sabedoria é o resultado de nossa experiência de vida, é o que aprendemos com nossas escolhas e com os nossos sentimentos. Entendo igualmente que não é algo que ocorre espontaneamente, mas algo que nos esforçamos por construir, observando a nós mesmos, nossos sentimentos, pensamentos e atos e, principalmente o resultado dos mesmos em nossas vidas. Requer meditação, método e persistência.

Quando Neo é levado pela primeira vez a Morpheus, ele sabe que há algo estranho no ar, que optar pela pílula azul não é realmente uma opção, mas o que ele já tem. A pílula vermelha é que vai apresentar para ele alguma novidade. Na verdade, vendo o filme, vamos descobrir que a pílula vermelha não apresenta qualquer novidade, mas "A" novidade, que é uma verdade absoluta sobre quem Neo realmente é e sobre o que é a Matrix.

Enfim, espero que em 2012 tenhamos a sabedoria necessária para escolher o melhor caminho para descobrirmos a nossa verdade e vivenciá-la na sua plenitude.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A flor e a náusea

Minha humilde e despretensiosa homenagem a Carlos Drummond de Andrade, neste dia do seu aniversário.



Bravo Drummond!

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Relembrando Francisco

Ele era um rapaz de origem nobre, fascinado por histórias de cavalaria e extremamente popular entre a juventude de sua época. Tinha fama de conquistador, andava bem vestido e, dizem, tinha algum apreço por bebidas e folguedos.
Um dia teve uma visão. E não hesitou em fazer-se nu de todo ego a fim de morrer para viver para a vida eterna. Mudou a sua vida e a história da Humanidade. Ele era Francesco Bernardone, de Assis. Ou Francisco de Assis, ou Irmão Alegria, ou il poverello.
Há, no filme de Zefirelli sobre sua vida, "Imão sol, irmã lua" (que é pura poesia devocional, senhores!), uma passagem que me é muito cara. Francisco vai ao Vaticano pedir permissão ao Papa para fundar sua Ordem. Vestido praticamente em andrajos, junto com seus companheiros, obviamente não é visto com bons olhos pelo clero frívolo e opulento que dominava a reunião, em um primeiro momento. Entretanto, a beleza de sua presença humildemente sincera e sinceramente humilde, consegue comover o Sumo Pontífice. O filme dá a entender que Inocêncio III chega a sentir certa inveja da paixão e da verdade que viu nos olhos do rapaz, tanto assim que arremata o encontro com uma frase que considero lapidar:
"Na nossa obsessão pelo pecado original, frequentemente nos esquecemos da inocência original"
Bonito, não? A mensagem de Francisco não poderia ser melhor resumida. Por mais que esta frase jamais tenha saído da boca do Papa e que o filme apresente uma versão romantizada, vale a reflexão.
Francisco conseguiu a permissão e graças a este feito é tido por muitos como o principal responsável por manter acesa a chama do verdadeiro cristianismo numa época em que a sua versão institucionalizada estava contraditoriamente no auge de seu poderio político, bélico e militar.
Abaixo, o trecho do filme.


Um forte abraço e uma ótima semana a todos!

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Humorterapia

Acho que ficar jururu é um fato normal da vida e invariavelmente nos faz pensar nela e buscar meios de superar o que quer que seja que esteja nos aborrecendo, mas definitivamente não é um bom estado para se pensar na vida por muito tempo. Aí quando tô assim lembro sempre da musiquinha de “A vida de Brian”. Always look on the bright side of life. E definitivamente uma coisa que me ajuda a ver o melhor lado da vida é ver vídeos de filmes engraçados no youtube. Tenho um especial apreço por Peter Sellers e seu inesquecível Inspetor Clouseau. Esses dias apelei pra ele e essa sequência absolutamente impagável de “A nova transa da pantera cor de rosa”, o último e mais fraco da série, mas que tem essa pérola que é das coisas que mais facilmente me fazem gargalhar rigorosamente toda vez que assisto. E não há melhor remédio para uma jururuzice do que uma boa gargalhada. Ia discorrer sobre o humor e sobre o fato curioso de ver alguém se dando mal ser algo divertido (melhor lado da vida? Hein?), mas não. Deixo a reflexão para você, se quiser. Vamos gargalhar logo de uma vez :D

 (só peço desculpas por não ter encontrado alguma versão legendada ou em português)

 top moments:

 (0:14) Querendo bancar o que manda na situação:
- I suggest we start with de upstairs. ("Eu sugiro começarmos pelo andar superior")
- This is the upstairs, sir. ("Este é o andar superior, senhor")
- Yes, I know that, I know that. ("Sim, eu sei disto")

 (2:03) Depois de se embananar todo com uma armadura medieval e terminar com uma luva metálica entalada na mão:
 – Obvious that the knight that wore this suit did not last very long! ("Obviamente que o cavalheiro que usou esta armadura não durou muito tempo!")

(3:50) Achando tudo muito suspeito:
- A beekeeper who has lost his voice, a cooker who thinks he's a gardener and a witness to murder… ("um apicuntor que perdeu a voz, um cozinheiro que pensa ser um jardineiro e uma testemunha de assassinato...")

(4:22) Depois de estraçalhar o piano tentando matar uma abelha:
- You ruined that piano! ("O senhor destruiu o piano!")
-What’s the price of a piano compared to the terrible crime that had been committed here? ("Qual o preço de um piano comparado ao terrível crime que ocorreu aqui?")
- But that was a priceless Steinway! ("mas era um Steinway de valor inestimável!")
-Not anymore! ("Não é mais!")

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Três coisas...

... que valem MUITO a pena pensar antes de morrer.
Só não vale deixar para os últimos minutos :)

Um semana abençoada a todos!

domingo, 17 de julho de 2011

Aula de poesia (e semiótica) com tio Drummond


PROCURA DA POESIA

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

C.D.A.

domingo, 3 de julho de 2011

Sobre religião, sectarismo e espiritualidade

621. Onde está escrita a  lei de Deus?
- Na consciência.
O Livro dos Espíritos

Li uma frase outro dia na internet, atribuída a um físico chamado Steven Weinberg que diz mais ou menos o seguinte: “Com ou sem religião, pessoas boas farão coisas boas e pessoas más farão coisas más, mas para uma pessoa boa fazer uma coisa má, é preciso religião”. Achei demasiado preconceituosa e reducionista (como toda declaração preconceituosa). O curioso é que a lógica simplória utilizada no primeiro trecho é solenemente ignorada no segundo somente a título de um ataque gratuito à religião. Pessoas boas não fazem coisas más com ou sem religião, ou eu perdi alguma coisa? Ora, se a pessoa dita boa fez algo mal é porque ela não é tão boa assim, certo? E ela é assim com ou sem religião, certo?

Não descarto a possibilidade de eu não ter alcançado alguma lógica refinada, sutil demais para o meu entendimento grosseiro, mas acho que tampouco estou errado nas minhas divagações.

Uma questão relevante que certamente está por trás desta frase é uma distinção que ouso fazer entre religião e sectarismo. Para tanto, tomarei a liberdade de me lançar a uma breve conceituação, mas que não destoa do senso comum, sendo antes dois aspectos facilmente perceptíveis de um mesmo fenômeno (a relação com o sagrado). Religião, penso, é o aspecto espiritual do ser humano que o aproxima de Deus, é uma experiência mística, individual, é o famoso “religar”; já o sectarismo está relacionado com aspectos culturais, com a objetivação deste sentimento íntimo nos variados grupos humanos, que origina o surgimento de diferentes seitas. Dito isto, entendo que quando se fala nos problemas causados pela religião no mundo, está-se falando do sectarismo. Sim, concordo que há problemas no sectarismo, e o principal deles está ligado justamente com o terreno pedregoso das verdades absolutas de que a religião se ocupa. Assim, um dos requisitos de legitimidade de qualquer seita é a pressuposição de que ela encerra todas as verdades absolutas do Universo. O problema, como é sabido, ocorre quando as verdades absolutas de uma chocam-se com as verdades absolutas de outras. Junte-se a isso, a atávica dificuldade do ser humano de conviver com o diferente, e pronto, está aceso o barril de pólvora.

Por isso, defendo que dificilmente uma pessoa dita boa, fará uma coisa má em nome da religião, pode até ser em nome de sua seita e dos ideais que ela proclama, mas dificilmente em nome da religião. Por mais que a pessoa alegue que foi Deus que a fez delinqüir, resisto a acreditar que haja aí um fenômeno místico, mas certamente psiquiátrico (sem qualquer tom pejorativo, por favor). Obviamente que por trás desta conceituação minha há toda uma concepção de Deus plenamente identificado com ideais de amor, nos moldes do que se diz que pregou Jesus Cristo, o que não me parece uma forma tão disparatada de se conceber Deus. A relação com o sagrado, segundo meu ponto de vista não é vedada sequer para os ateus ou materialistas. Conheço inúmeros bastante mais “religiosos” que muito sectário por aí.

Para finalizar, copio e colo um texto que me chegou por e-mail de que eu gostei muito. A autoria é desconhecida. O que eu chamo de sectarismo, ele chama de religião e o que eu chamo de religião, ele chama de espiritualidade. Discordo de um ponto ou outro, mas é bastante inspirador:

As Diferenças entre Religião e Espiritualidade

A religião não é apenas uma, são centenas.
A espiritualidade é apenas uma.
A religião é para os que dormem.
A espiritualidade é para os que estão despertos.

A religião é para aqueles que necessitam que alguém lhes diga o que fazer e querem ser guiados.
A espiritualidade é para os que prestam atenção à sua Voz Interior.
A religião tem um conjunto de regras dogmáticas.
A espiritualidade te convida a raciocinar sobre tudo, a questionar tudo.

A religião ameaça e amedronta.
A espiritualidade lhe dá Paz Interior.
A religião fala de pecado e de culpa.
A espiritualidade lhe diz: "aprenda com o erro".

A religião reprime tudo, te faz falso.
A espiritualidade transcende tudo, te faz verdadeiro!
A religião não é Deus.
A espiritualidade é Tudo e, portanto é Deus.

A religião inventa.
A espiritualidade descobre.
A religião não indaga nem questiona.
A espiritualidade questiona tudo.

A religião é humana, é uma organização com regras.
A espiritualidade é Divina, sem regras.
A religião é causa de divisões.
A espiritualidade é causa de União.

A religião lhe busca para que acredite.
A espiritualidade você tem que buscá-la.
A religião segue os preceitos de um livro sagrado.
A espiritualidade busca o sagrado em todos os livros.

A religião se alimenta do medo.
A espiritualidade se alimenta na Confiança e na Fé.
A religião faz viver no pensamento.
A espiritualidade faz Viver na Consciência.

A religião se ocupa com fazer.
A espiritualidade se ocupa com Ser.
A religião alimenta o ego.
A espiritualide nos faz Transcender.

A religião nos faz renunciar ao mundo.
A espiritualidade nos faz viver em Deus, não renunciar a Ele.
A religião é adoração.
A espiritualidade é Meditação.

A religião sonha com a glória e com o paraíso.
A espiritualidade nos faz viver a glória e o paraíso aqui e agora.
A religião vive no passado e no futuro.
A espiritualidade vive no presente.

A religião enclausura nossa memória.
A espiritualidade liberta nossa Consciência.
A religião crê na vida eterna.
A espiritualidade nos faz consciente da vida eterna.

A religião promete para depois da morte.
A espiritualidade é encontrar Deus em Nosso Interior durante a vida. 

(AUTOR DESCONHECIDO)



Uma ótima semana a todos e muita paz!

domingo, 26 de junho de 2011

Guerra e paz

O dia começou cedo em Lugano, cidade no sul da Suiça, fronteiriça com a Itália, região que se convencionou chamar “Suiça italiana”. Deixamos o Hotel Walter, bela construção de 1888 à beira do lago, por volta das 9 horas da manhã com destino à Itália setentrional, mais precisamente às cidades de Porretta Terme e Pistoia, onde, cerca de 66 anos antes, uma parte da Força Expedicionária Braseileira, instalou-se em campanha contra a Alemanha. Na excursão um dos ex-combatentes, o 3º Sargento do 4º Pelotão da 2ª Companhia do 9º Batalhão de Engenharia da mencionada Força Expedicionária, nonagenário, que, desde então não havia mais pisado naquelas localidades, meu avô.

A viagem foi tranqüila, algo em torno de 4 horas de duração, pouco sentidas em virtude das inspiradoras paisagens da Lombardia e da Emilia-Romagna, embora o tráfego pelas rodovias fosse extremamente intenso. A ordem era seguir até as proximidades de Bologna e, dali, pegar a secundária rota SS64, que nos levaria a Pistoia, passando por Porretta Terme. Não sem uma certa confusão, rapidamente resolvida, conseguimos encontrar a mencionada estrada secundária e em instantes meu avô já revia indicações em placas de locais que ele não pisava há 66 anos: Silla, Bombiana, Abetaia...

Ao passar por Porretta Terme, pediu para parar. Entramos pela cidade e, como era de se esperar, não era possível reconhecer muita coisa. Não por qualquer problema de memória, meu avô é das pessoas mais invejavelmente lúcidas que conheço, mas porque, obviamente, a cidade havia mudado um bocado ao longo das últimas 6 décadas. Estacionamos próximo ao imponente prédio da Prefeitura de Porretta Terme e, como estivesse próximo à hora do almoço, primeiro nos preocupamos em atender a esta demanda para depois explorarmos a cidade.

Prefeitura de Porretta Terme
No restaurante em que aportamos havia uma coleção de fotos da antiga Porretta Terme, provavelmente anteriores, inclusive, à própria Guerra. No meio daquelas fotos divisei uma construção que muito se assemelhava às descrições do que meu avô dizia ser um antigo hotel desativado, utilizado por seu batalhão como abrigo e centro de operações. Mostrei-o e ele confirmou fazendo a ressalva de que, durante a guerra a construção era pouco mais que simples escombros. Disse que suas janelas haviam todas sido retiradas para que sua madeira fizesse as vezes de lenha para que os soldados pudessem melhor se aquecer e que, nos fundos, havia uma pedreira que era permanente alvo de bombardeios.

Foto do Hotel Roma em restaurante em Porretta Terme
Dali, retornamos ao prédio da prefeitura onde havia um centro de informações turísticas. Queríamos um mapa da região para melhor localizarmos os povoados em que meu avô trabalhou na manutenção de estradas e pontes e na procura por minas terrestres. Fomos atendidos por um gentil casal que prontamente nos deram os mapas e que nos informaram que o referido hotel (cuja foto acima lhes mostramos) ficava a pouco metros dali, no fim daquela rua, à esquerda. Quando contamos que meu avô havia estado ali, junto à FEB, durante a guerra, ambos mostraram grande entusiasmo chegando inclusive a agradecê-lo pois provavelmente se não fosse a atuação dos brasileiros as coisas poderiam ter sido muito piores, e eles poderiam nem estar ali naquele momento. Confesso que me emocionei. Informaram ainda que no Monte Castelo, onde ocorreu um embate decisivo para a retirada dos alemães da região, havia um monumento em homenagem à FEB e aos soldados brasileiros que valia a pena ser visitado. Despedimo-nos e fomos procurar o Hotel Roma que, de fato, ficava a poucos metros dali. Moderno, restaurado e bem conservado, não perdemos tempo para fotografar meu avô à sua frente e, após, no parque ao fundo (onde havia a tal pedreira, hoje um anfiteatro com brinquedos infantis). Dali partimos para Monte Castelo e adjacências.


Fachada do Hotel Roma


Em frente ao Hotel Roma.
Fazia um dia belíssimo e a paisagem interiorana da Emilia-Romagna auxiliava a compor o emocionante e bucólico espetáculo da natureza. Passamos por Bombiana e Abetaia, onde meu avô relembrou a morte de seu amigo Ribeiro, vítima de uma das incontáveis bombas escondidas em escombros de casas. Na sua lucidez impressionante recordou-se que aquele dia era justamente o seguinte ao do aniversário de Ribeiro, o que não deixou de ser uma coincidência auspiciosa. Na volta, avistamos, ao longe, o que deveria ser o tal monumento referido pelo guia. Pegamos uma saída onde se lia a placa “Monte Castelo” e, sem surpresa, nos deparamos com o tal monumento. Em um terreno descampado, no alto de um morro, dois gigantescos arcos, entrelaçados em cruz, um voltado para cima, outro emborcado para baixo, e o sol, em toda sua plenitude, convidavam-nos a uma visita mais próxima evocando um local sagrado, de graves reflexões.

Monumento em homenagem aos soldados brasileiros da FEB em Monte Castelo
Difícil conceber que paisagem tão inspiradora já servira de locação para uma das batalhas do mais trágico evento que o mundo já conheceu. Das minúsculas flores que tapeteiam o monte ao silêncio monástico somente quebrado pelo som suave da brisa leve que volta e meia varria o capimzal, tudo ali convidava às mais belas reflexões. Entretanto, a estupidez humana é, e sempre será, cega para a transcendência de tudo o que é verdadeiramente belo - esta foi uma reflexão inevitável. Tentei, mas não consegui visualizar a terra mutilada pelos mais variados tipos de minas e bombas, nem cadáveres ou partes deles espalhados pelos arredores, essas coisas não pareciam alguma vez ter feito parte da vida daquele lugar. Todavia, aquele monumento gigantesco e uma testemunha ocular daquela história estavam ali para garantir o contrário.

Meu avô pediu permissão para bater continência em direção ao monumento, bem como em direção a Abetaia, em homenagem ao companheiro Ribeiro, que lá sucumbira. Desnecessário dizer que grande emoção tomou conta de todos nós presentes. Suas histórias sobre a guerra povoou o imaginário de filhos, netos (e provavelmente povoará os dos – por enquanto - 3 bisnetinhos), bem como dos demais integrantes de nossa imensa família. Seu diário de guerra (sim, ele o tem) é lido gerações afora. Desta forma, é difícil descrever a emoção de presenciar um momento como este. Fiquei tentando imaginar o que poderia estar se passando pela cabeça dele, mas acho que não teria capacidade nem maturidade de compreender. Só posso dizer que meu avô é amigo do tempo. Sabe vê-lo passar. Mesmo a custa de todo sofrimento (que ao longo destes 90 anos não foram poucos, afianço-vos), ele remanesceu forte e lúcido com toda candura que lhe é peculiar. E aquele momento soou para mim como uma espécie de prestação de contas. E refleti que daqui a 66 anos, se eu me vir em situação parecida e for ao menos metade da pessoa que ele é, terei sido um sujeito de muita sorte.

Homenagem aos companheiros que lutaram.
Abetaia ao fundo. Homenagem ao companheiro Ribeiro.
Dali, passamos rapidamente por Pistoia sem sequer sair do carro. Depois de tudo aquilo, certamente havia muito pouco mais a ser visto.
Para completar o roteiro, nosso destino final naquele dia era justamente Assis, a cidade onde nasceu e viveu um dos maiores baluartes da paz que este mundo já viu, São Francisco de Assis. Inspirador foi pouco.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Amor?


Quando vi o trailer deste novo trabalho do cineasta João Jardim (co-diretor de JANELA DA ALMA e do indicado ao Oscar LIXO EXTRAORDINÁRIO), lembrei inevitavelmente de outro filme que lhe é umbilicalmente ligado, que é JOGO DE CENA, de Eduardo Coutinho. Tanto assim que confesso que fui assistir o filme um pouco compadecido do fato de um cineasta relativamente novato (se comparado ao mestre Coutinho), com trabalhos tão interessantes, se prestar a copiar uma idéia já utilizada tão magistralmente em um trabalho de um diretor consagrado. Contudo, para minha alegria, devo dizer que todo meu compadecimento se mostrou vão.
Uma diferença clara entre os dois, é que em JOGO DE CENA o brilhante documentarista intercalava alguns depoimentos reais com uma versão interpretada dos mesmos por uma das atrizes convidadas (gente do naipe de Andrea Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra, coisa básica). Em dado momento as atrizes são questionadas sobre como foi a experiência de interpretar alguém real, bem como também são convidadas a falar sobre suas próprias histórias de vida. Em outro, Coutinho nos engana, nos deixando sem saber, qual era o depoimento autêntico e qual era o encenado. AMOR? já não se ocupa disto com tanta objetividade, jamais mostrando os depoimentos reais ou conversando com os atores sobre a experiência.
Em AMOR? a iniciativa de substituir entrevistados reais por atores até remete às zonas cinzentas desta dicotomia realidade/ficção, mas isto é só um aspecto da discussão que o filme propõe, estando a serviço de uma temática específica. Enquanto em JOGO DE CENA as personagens da vida real foram encontradas através de um anúncio nos classificados de um jornal sendo os únicos requisitos que as mesmas fossem mulheres e tivessem “uma história para contar”, em AMOR? há “personagens” masculinos e femininos cujas histórias tem um conteúdo em comum bem definido: todos vivenciaram experiências extremas de “amor” e paixão em que invariavelmente estava presente algum tipo de violência. Assim, a escolha de atores para interpretá-los, além de nos fazer refletir, como em JOGO DE CENA, sobre a “teatralidade do humano”, também serve para potencializar o fato de que aquelas histórias, apesar de parecerem saídas de um filme do Almodóvar, eram bem reais. Em suma, a brincadeira com o binômio realidade-ficção é a mesma em ambos os filmes, somente que enquanto JOGO DE CENA utiliza os depoimentos reais, AMOR? se utiliza da crueza das histórias narradas e da fraqueza demasiado humana de seus personagens para construir sua ponte com a realidade. E ainda, enquanto JOGO DE CENA tem esta reflexão sobre realidade-ficção como temática principal, em AMOR?, este é apenas um dos aspectos do filme, sendo utilizado para ressaltar a temática principal que são as relações amorosas violentas.
O que é amor? Ele está presente realmente em relacionamentos violentos? Além destas cogitações filosóficas, este é um filme que nos convida a julgamentos morais já em seu título. A interrogação pode ser, sim, um sinal de imparcialidade do documentarista, mas depois de alguns minutos de filme, vemos que ela é realmente pertinente. Não me considero uma pessoa de temperamento violento e não cresci em um ambiente violento e talvez por isso fiquei tão incomodado com algumas histórias ali narradas, principalmente as interpretadas pelo naipe masculino Eduardo Moscovis, Claúdio Jaborandy e Ângelo Antônio, notadamente os agressores.
Diga-se de passagem, todo elenco, que conta ainda com Lília Cabral, Fabíula Nascimento, Sílvia Lourenço, Letícia Colin, Júlia Lemmertz e Mariana Lima está irrepreensível. A naturalidade da interpretação de Lília Cabral é algo impressionante, o que me leva a questionar sobre o porquê de sua pouca assiduidade nas telonas. Fabíula Nascimento, cada vez mais onipresente (graças a Deus), deixa bem claras, com seu carisma e talento, as razões de emendar um trabalho no outro. E foi um prazer rever Silvia Lourenço depois de tê-la visto somente em O CHEIRO DO RALO.
O filme intercala os depoimentos com imagens dos atores em situações cotidianas, o que humaniza ainda mais a discussão. A trilha sonora delicada de Lenine cumpre muito bem a sua função de embalar estes momentos (há uma versão de Beatriz que é bem bonita), muito embora soe quase como uma piada a opção por terminar a película com a sua clássica “Hoje eu quero sair só”. A fotografia busca ser realista, sem muitos efeitos, como se espera de um documentário, salvo quando opta por uma paleta dessaturada para os depoimentos, como a ressaltar toda obscuridade e clima opressivo que a violência proporciona às suas vítimas ou nestes momentos prosaicos, em que se tem maior liberdade para pintar os quadros da vida comum.
Por fim AMOR? é um filme complexo, que dá pano para manga para as mais variadas discussões. Principalmente para quem, como eu, não tem uma referência próxima de violência doméstica, serve como um bom parâmetro para compreender movimentos atuais de proteção à mulher, como a Lei Maria da Penha e sua relevância.

domingo, 17 de abril de 2011

Sobre "Pânico 4"


Lá pelos idos de 1997, meio sem saber muito do que se tratava, fui com minha mãe ao cinema (o falecido e imenso Art Tijuca, hoje uma irrelevante Leader Magazine), por indicação de minha irmã assistir ao primeiro PÂNICO. Eu já havia sido aterrorizado na minha infância por Jason e companhia e não precisou de muito esforço para eu me tornar um fã imediato desta nova produção. Além do fato de eu já gostar do gênero, o roteiro era bem trabalhado, o clima de tensão era bem construído e ainda havia um certo humor com várias referências espirituosas sobre cinema e filmes de terror. Quando soube que haveria uma continuação, fiquei eufórico e passei a acompanhar todos os filmes da trilogia – e todos os outros do gênero que vieram a reboque deste que já é considerado um clássico pelos especialistas.
Eu jamais poderia esperar que, onze anos depois de PÂNICO 3, iriam se aventurar a fazer um PÂNICO 4. Primeiro porque aparentemente já tinham sido aproveitadas todas as oportunidades que a saga de Sidney Prescott e companhia poderia oferecer e segundo que o gênero não está exatamente em alta (e aí pode surgir uma luz sobre a justificativa para esta continuação: a esperança dos estúdios de resgatar um gênero que sempre é sinônimo de bilheterias generosas e que nessa era de downloads pode atrair novamente o público para as salas de exibição por ser sempre um evento melhor aproveitado por grupos de adolescentes histéricos - principalmente os americanos, que tem mania de interagir com os filmes).
Além disso, confesso que assistir a um filme deste tipo nesses dias de hoje foi uma experiência estranha por outros motivos. Quando cheguei ao cinema, tinham dois meninos do lado de fora num misto de excitação e medo para entrar na sala. Diziam eles que tinham visto não sei onde que em algumas sessões poderia aparecer uma pessoa vestida de Ghostface para assustar os espectadores e promover o filme. Eles pareciam se divertir com isso, eu, confesso, fiquei preocupado de verdade. Podem me chamar de neurótico, mas na época dos primeiros filmes não havia Columbine, atirador do shopping Morumbi e atirador de Realengo. Naquela época, fazia parte do esquema saber que aquilo tudo não passava de ficção, que somente estávamos dando vazão a nossa ancestral atração por sentir medo com segurança e até por diversão e, mais importante, com distanciamento. Nunca situações deste tipo tinham acontecido tão próximo a mim a ponto de me incomodar um pouco na hora de ver o filme, e não posso dizer que não incomodou.
Enquanto filme, fui sem esperar muita coisa e ouso dizer que fui surpreendido positivamente. Acho que nada superará a trilogia original, principalmente os dois primeiros, mas confesso que curti também os seguintes, guardadas as devidas proporções.
Acho que o que mais gostei neste filme foi a oportunidade de rever os personagens tanto tempo depois e saber o que “aconteceu” com eles nesse meio tempo. Achei uma proposta interessante. Bem batida, mas interessante, principalmente por ser uma franquia que acompanhei de perto.
O filme começa justamente brincando com a infinidade de sequências caça-níqueis desnecessárias que esse tipo de produção costuma ter (e da qual este parece pretender ser uma exceção) e já dá pistas de que o mote vai ser justamente uma tentativa de atualizar o gênero para os dias atuais de internet, imediatismo e 15 minutos de fama.
Sidney Prescott retorna como uma equilibrada autora de livros de auto-ajuda perseguida, sim, por seus fantasmas, mas disposta a enfrentá-los, tanto assim que quando Ghostface ataca pela primeira vez em sua presença, em vez de fugir com medo, ela corre em sua direção disposta a enfrentá-lo a qualquer custo, inclusive dando-lhe uns bons sopapos. Neve Campbell parece segura no retorno à personagem que a lançou na carreira cinematográfica, sendo ainda uma presença forte em cena com seu carisma e olhar expressivo. Courtney Cox e David Arquette também estão razoáveis neste retorno a Gale Weathers e Dewey, agora promovido a xerife. Lembrava dele ter ficado com seqüelas físicas dos acontecimentos do primeiro filme (o que, salvo engano foi até motivo de piada nas outras sequências), mas isso não aparece e não é sequer mencionado neste, será que ele se recuperou com incontáveis sessões de fisioterapia? Ficamos sem saber. Gale Weathers busca uma relevância na trama que nunca chega a ter, mas é divertido vê-la novamente em ação nem que seja para “matar a saudade”. Já os “novatos” Hayden Panettiere (Kirby Reed), Rory Culkin (Charlie Walker), Emma Roberts (Jill Roberts), Erik Knudsen (Robbie Mercer) e Nico Tortorella (Trevor Sheldon) se saem bem também neste quase remake do primeiro filme (reparem bem, quase todos estes perfis estavam no primeiro filme, inclusive o tipo de morte de alguns). Destaque para os dois primeiros, que realmente saem do tatibitate dos filmes do gênero conferindo alguma autenticidade às suas atuações.
A direção de Wes Craven é competente como sempre e o roteiro segue o padrão PÂNICO de qualidade com suas tiradas espertinhas, referências a filmes e muitas mortes. Inclusive parece que andaram bebendo na fonte de JOGOS MORTAIS, carregando um pouco mais no sangue e nas vísceras expostas do que normalmente se vê nos outros filmes da franquia – mas ok, não chega a ser aquilo que críticos como Pablo Villaça convencionaram chamar de pornografia da tortura. Contudo, apresenta falhas como quando claramente levanta suspeitas infundadas sobre um dado personagem só porque ele lembra um dos assassinos do primeiro filme, nunca justificando a aparente antipatia gratuita que ele parece nutrir por Sidney. Ou quando uma personagem não repara em duas vítimas de Ghostface que rigorosamente estariam em seu caminho na volta do mercado ou ainda quando uma outra personagem é desconectada dos aparelhos médicos em um hospital e isso não é detectado pelas enfermeiras.
Entretanto, creio que a principal falha seja que mesmo apresentando uma crítica as continuações intermináveis e desnecessárias de seus congêneres, este PÂNICO 4 não conseguiu exatamente inovar como fez o primeiro 15 anos (!) atrás. É visível que até tenta, incluindo a internet na jogada, mas não foi criativo o bastante para fugir dos próprios clichês que criou para si.

sábado, 16 de abril de 2011

It's the Bahamas!

Para mim, escrever é uma das tarefas mais prazerosas que exerço. Gosto das palavras, gosto dos sentimentos, mas de vez em quando isso tudo me causa certo enfado. E aí, fico tentando entender se devo me preocupar com a minha sanidade mental ou esperar a inspiração vir até o momento em que simplesmente resolvo, esparramado na cama com o note no colo (ouvindo Mozart, no headphone, bem se diga), acabar com as dúvidas e começar a rascunhar uma coisa ou outra.
Pois bem, neste meio tempo tive uma meia dúzia de idéias interessantes para desenvolver aqui, mas não o fiz porque me impus a condição de só voltar a escrever alguma coisa depois de dar seguimento ao diário de viagens do penúltimo post.
Depois da última quinta feira narrada aqui, na sexta, dia 18 de março, embarcamos para Nassau, capital do complexo de 700 ilhas (segundo meu primo. A Wikipédia fala em 31 distritos), que é as Bahamas. As Bahamas são quase um pedaço da África na América Central onde se fala um inglês quase britânico e a mão do trânsito é inglesa. É claro que isso é fruto do processo de colonização, contexto do qual o complexo de ilhas se viu independente somente em 1973, e também do tráfico negreiro, que quando extinto, não motivou nenhuma boa alma a levar os negros de volta a seu continente de origem – as Bahamas eram um importante centro de triagem dos negros que seriam vendidos para as Américas. Quanto aos nativos originais, os índios arawakes, como a maioria pré-colombiana, foram devidamente dizimados. Atualmente os principais atrativos das Bahamas são, como se sabe, as praias paradisíacas e os mega complexos hoteleiros que atraem um quantitativo de turistas/ano maior que o Brasil.
A viagem para Bahamas foi um desafio a parte. Não era uma simples viagem a passeio, era também um pouco de mudança de alguns familiares meus, dos EUA para Nassau. Eram 14 malas. 10 para despachar (sendo 3 delas de proporções gigantescas). 2 para o baggage storage, 2 para levar na mão, 2 crianças (sendo um bebê de um mês de vida e uma menininha de três anos ansiosa por correr para explorar espaços), 2 carrinhos de criança, 2 vovôs e um aeroporto gigantesco para percorrer. A caminho do nosso portão, no skytrain que dava acesso ao mesmo, a esposa do meu primo olha pra mim e diz num misto de susto e divertimento: 'Que aventura!'. De fato, uma aventura. O avião era pouco mais que um ônibus que voa. Duas poltronas para um lado, duas para o outro. Hélices. Estava cheio, muita gente aproveitando o chamado spring break (uma espécie de micro férias para aproveitar a primavera após um longo e tenebroso inverno), mas eram só 45 minutos de vôo até Nassau. Sentei no corredor, mas deu para bisbilhotar um pouco pela janela a espetacular boas vindas do mar com sua película de gelatina verde sobre imensos areais e corais e o sol resplandecendo tudo.
A estadia em Bahamas não poderia ser melhor. Uma coisa boa de se ter uma casa para ficar é poder se sentir em casa. Foi mais uma viagem de descanso, do que propriamente de turismo (não que isso tenha deixado a desejar, muito pelo contrário, creio que conhecemos o melhor de Bahamas), o que de uma certa forma foi ideal para os meus avós. Acordar todo dia de manhã e dar de cara com um mar azul turquesa é praticamente um imperativo categórico contra qualquer desânimo ou tristeza. Respirar uma lufada daquela brisa marinha, sentir aquele sol da manhã na pele são uma experiência espiritual.
Fomos a excelentes restaurantes, destaque para o Café Matisse, onde comemoramos o aniversário de 90 anos do meu avô (um dos dias mais agradáveis que passamos lá, que serviu como uma celebração suave, mas profunda desta data tão importante). Fomos na Goodfellows Farm, uma fazendinha onde o restaurante serve os produtos orgânicos lá produzidos e a comida é simplesmente deliciosa. Fomos a um zoológico de aves, onde tem um show de flamingos e se pode entrar na jaula nas maritacas para alimentá-las e ser faceiramente atacado por elas.
Fomos a um clube onde, salvo engano, foram filmadas algumas cenas de um dos filmes recentes do 007 (e que tocava Beatles e Coldplay no banheiro, juro), fomos ao monumental Atlantis, o maior resort da região (enquanto os chineses ainda não construíram o seu rival, um investimento de reles 2 bilhões de dólares) com seu cassino, seu aquário gigantesco e sua marina que abriga os iates mais cinematográficos que já vi pessoalmente. E praticamente todo dia eu me dava o direito de mergulhar naquelas águas transparentes para dar um alô pros peixes e estrelas do mar que estavam sempre ali por perto.
Enfim, foi uma viagem inesquecível não só pelos lugares incríveis visitados, mas sobretudo por estar em companhia das pessoas que mais amo, minha família.

Alguns protestaram da falta de fotos do último post. Então, segue uma minha (meio playsson, eu sei) no tal clube Albanys:

domingo, 20 de março de 2011

Miami Portraits

Já disse em um outro post que este blog tinha um quê de querido diário, mas nunca explorei essa faceta efetivamente, o que passo a fazer agora. O que segue abaixo é um relato burocrático-emocional desta viagem de boas vindas a Felipe e de celebração aos 90 anos de vida de meu avô.

A quem interessar possa:

Sexta 11-03-2011

Vôo da madrugada com poltronas apertadas e aeromoças de mocidade duvidosa. 'Megamente' no televisor como uma pequena piada comigo. Consegui dormir sentado quase que apelando para estratégias de meditação transcendental. Pousamos 5:35, hora local. O cara da alfândega se espantou com o fato de eu ser advogado. Entramos no aeroporto de noite, saímos no primeiro sol da manhã, o que deixa tudo ainda mais onírico. Tentativas frustradas de ligar para casa pelo número da Embratel. Não por falha no serviço (que é um achado), mas por que o toque não foi ouvido. Liguei para a irmã em São Paulo. A família de cá nos recebeu calorosamente, o pequenino todo se mexendo e emitindo vários sonzinhos (o que me deixou com mais saudade do sobrinho). A priminha está uma simpatia brincando com todo mundo e falando um pouco de cada lingua para agradar a todos! A graciosidade em forma de criança.
Deixamos o primo no escritório e fomos desbravar o primeiro mundo. Fomos a Miami Beach (a casa do Versace sempre me pareceu tão maior nas fotografias), Coconut Grove e ainda conheci a Universidade de Miami e sua biblioteca incrível. Me emocionei (não de chorar, mas de lamentar) ao lembrar de tudo aquilo que a Universidade onde estudei poderia ser e não é (ai de ti, terceiro mundo!). Não conheci a Law School, mas talvez o faça em outro momento. Depois, almoçamos no Tony Roma's (Ramos, segundo meu avô) algo quase viking, passamos no mercado onde um brasileiro me contou do terremoto no Japão e viemos descansar. Acertei no presente para a pequena: As antigas canções de roda brasileiras são irresistíveis para todas as crianças, inclusive as importadas. Salve Galinha Pintadinha, o hit incontestável da viagem.


Sábado 12-03-2011
Hoje acordamos cedo e fomos tomar café no Lighthouse Cafe. Ovos com bacon - quem com porcos anda, farelo come - farelo muito bom, por sinal - a beira da praia . Estava um sol frio, que só ilumina, mas não chega a esquentar. Ideal para tirar fotos históricas, daquelas que ilustrará portas retratos na parede de casa por gerações. Meus avós na praia, a priminha definindo a meiguice com uma florzinha na mão. O farol, imponente como um sentinela gigante - ainda que adormecido. A casa do velho faroleiro remetendo a uma Florida selvagem, e a uma insuportável solidão. Época em que não existia Highways, Miami beach e transatlânticos estacionados no porto. Só o barulho do mar e a preocupação com os malditos índios. Tudo cinematograficamente conservado como um souvenir em tamanho real. Realmente lindo.
Dali, zarpamos para Fort Lauderdale. Rainforest Cafe, o restaurante-floresta-tropical, nos esperava com seus gorilas que se mexiam e elefantes que bramiam. Minivan no aeroporto. Estrada em perfeito estado. St Peter arrebentando no weather. Há uma cortina de chuva no bar, um portão de aquário na entrada e, de trinta em trinta minutos a iluminação e a bicharada simulam uma tempestade tropical. É tudo automatizado, claro, mas impressiona bastante. Dá para se sentir criança, sim, mãe. Queria ter tirado uma foto de minha avó com os gorilas, mas todos esquecemos. Vovô ganhou um Volcano - brownies com sorvete - como uma pré comemoração de seus 90 anos, com direito a fanfarra da garçonzada e tudo. De lá, tentamos fingir ser turistas convencionais e partimos para a Apple Store mais próxima (Galleria Mall) para tentar disputar um Ipad2 no dia de seu lançamento, empreitada que, obviamente, restou frustrada: Ipad2 está sold out. Na volta pela praia, o sol se escondia atrás dos prédios. Iluminação e cenários de cinema. Halle Berry numa mesa próxima a de um amigo do primo num restaurante em Miami Beach quase me fez crer que eu estava, sim, em um filme. Uma passada por lá ficou só na fantasia pois a esta altura já estávamos todos exaustos, mas felizes.

Domingo 13-03-2011
Lembranças para o café da manhã. De Miami para Itaperuna, infância e adolescência em alguns segundos, entrecortados por bagels, tostadas e vitamina de bananas. À tarde, churrasco de espanhol, francês e inglês. Assim foi até pouco depois do Fla-Flu 0x0 em Key Biscayne. Via internet.

Segunda 14-03-2011
Compras, compras e muitas compras. Nosso dia de turistas convencionais maratoneando pelos shoppings de Miami. Dadeland e The falls, sendo o Milk Shake de chocolate do The Rocket altamente recomendável. Sem mencionar sua decoração sooo 50's com trilha sonora de igual calibre. A lenda do Ipad2 disputa com a Galinha Pintadinha o título de hit da viagem.

Terça 15-03-2011
Rodamos Miami procurando o Ipad2. E, ok, passeando também. A estratégia de marketig da Apple é a do desespero falsificado. Explico: Cada loja conta com cerca de 20 vendedores cada. Para a venda do Ipad, são destacados algo como 3 vendedores somente. A cereja do bolo é que cada loja recebe um número limitado de aparelhos por dia. Resultado: Fila, impressão de que as vendas estão batendo recordes e, principalmente, que você vai ser a carta fora do baralho se você não tiver um. Há um certo sinal de discurso ensaiado quando eles dizem que o aparelho está sold out e que, infelizmente, eles não sabem quando chegará mais. Segredo: Invariavelmente no dia seguinte, pela manhã, aparentemente brotam Ipads nas lojas. A sensação de que eles mantém uma quantidade em depósito e só liberam de acordo com a repercussão e a procura, é inevitável. Por fim, paramos na Lincoln Road, Miami Beach. Bombando em plena tarde de terça feira. Almoçamos no italiano Tiramesu, o que é recomendável. Dali, caminhamos um pouco. No meio do burburinho, eis que surge uma igreja comunitária, pálida e deslocada (porém respeitada) como uma noiva virgem numa zona de meretrício. Moças de catálogo passam com a última moda, crianças em carrinho ouvem Ipods, pessoas andam de patins, casais gays passeam com seus filhos. Assim foi a Licoln Road numa tarde fresca e ensolarada. Encerramos na loja da Nespresso. Atração tanto para o paladar como para a visão. O dia encerrou com um por-de-sol alaranjado acariciando Key Biscayne.

Quarta 16-03-2011
Dia da correria. Sou um turista meio às avessas. Óbvio que me interessam os pontos turísticos, as paisagens cinematográficas, as boas compras, mas eu simplesmente adoro vivenciar o dia-a-dia comum do lugar onde visito. Hoje foi o dia das arrumações e logísticas de mudanças. Quantas pessoas que você conhece viajou a outro país e teve que lidar com algo tão prosaico como mudar de casa. Meus familiares daqui (que não são tão daqui assim) moram nas Bahamas e estavam aqui devido ao nascimento do pequenino. Pequenino já com um mês de vida, esbanjando saúde e fofura, passaporte a tira colo (com uma carinha irresistível de what-the-fuck na foto): hora de voltar para casa. E, assim, iremos todos. Ok, que teve o café da manhã no mais que recomendado Ihop (International House of the Pancakes), que realmente vale todas as recomendações, e que teve o peixe frito de almoço perto do farol num cais com um visual de jamais contestar a existência de Deus, mas isso foi nos intervalos, o dia mesmo foi de empacar (empacotar, em espanhol, deduzi) e transportar infindáveis caixas e malas gigantescas. Pode parecer um super programa de índio, mas eu curti. Aprendi que você pode deixar malas no aeroporto de Miami por 2 meses a 8 dólares o dia (no setor apropriado, obviamente), que a ups empacota coisas aparentemente não empacotáveis e como se abastece o carro nos postos self service daqui.

Quinta 17-03-2011
Apple store, Dadeland, 9h da manhã: Fila discreta no interior da loja. Minha tia fica na fila enquanto retorno no carro para buscar o casaco. No caminho, fico me questionando se estou mesmo com frio ou se é TOC (é quase primavera no hemisfério norte, temperaturas amenas - e quase tropicais na Flórida). Não chego a uma conclusão. Quando retorno, minha tia me dá a notícia surreal da temporada: Aparentemente a fila era à toa. Os vendedores (grosseiramente) diziam que estava esgotado, mas os consumidores se recusavam a acreditar. Isso mesmo. Saí dali sem nem querer saber o final da novela e, sim, satisfeito por não ter conseguido um Ipad2. Dali, fui turistar com meus avós no Miami Seaquarium. Fiquei com um misto de ternura e pena dos golfinhos e das baleias adestradas, pensando se eram maltratados. De qualquer forma, viviam num aquário a poucos metros de um mar imensamente azul, o que, sem dúvida, deve significar alguma coisa para eles. Videos da minha avó se divertindo vendo os golfinhos fazendo piruetas e a baleia dando banho nas crianças. Quero guardar estes momentos para sempre.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Breves comentários


Sobre o Oscar ontem: Só dividirei aqui minhas impressões sobre as categorias principais, levando em consideração os (poucos) filmes que vi desta temporada.

Melhor atriz: Natalie Portman
Dificilmente discordarei da Academia quanto a esta escolha, mesmo não tendo assistido o desempenho das concorrentes Annette Benning, Nicole Kidman, Michelle Williams e Jennifer Lawrence. A visceralidade que vi na atuação de Natalie Portman em CISNE NEGRO foi algo tão impressionante que, sem dúvida, por tê-la assistido primeiro e ainda contar com o aval da Academia agora, ficarei bastante imparcial ao conferir as outras.

Melhor ator: Colin Firth
De novo, meus parâmetros são escassos, mas suspeito que igualmente não discordadei da Academia. Vi Jesse Eisenberg (que só me impressiona positivamente desde o -no meu ponto de vista- subestimado A LULA E A BALEIA) interpretar justamente o Mark Zuckerberg que imaginei quando li BILIONÁRIOS POR ACASO, mas nada se compara à sensibilidade cativante que Firth emprestou ao seu rei gago, um tanto inseguro, porém (ao menos na ficção) imensamente íntegro. Há certas nuances em sua interpretação que seria uma tremenda injustiça não premiá-la.

Melhor direção: Tom Hooper
Esta categoria contou com uma das maiores injustiças do Oscar deste ano que foi não contemplar, ao menos com uma indicação, o trabalho de Christopher Nolan em A ORIGEM. Dito isso, ouso dizer que esta premiação seria uma das discordâncias (talvez em parte) que tenho com a Academia. O trabalho de direção de Tom Hooper em O DISCURSO DO REI é, sim, muito bom, mas David Fincher teve um excelente desempenho, também, no seu bom (e só) A REDE SOCIAL. Contudo, o meu Oscar definitivamente iria para Darren Aronofsky por sua arrebatadora inspiração ao filmar o avassalador CISNE NEGRO, nos transportando de maneira contundente para a auto-destrutiva emotional rollercoaster de sua psiquiátrica protagonista.

Melhor filme: O discurso do rei
Dos que assisti desta categoria, classificaria da seguinte forma, em ordem crescente de preferência: A ORIGEM, A REDE SOCIAL, O DICURSO DO REI e CISNE NEGRO. Entretanto, como disse a um amigo, só "aceitaria" que CISNE NEGRO perdesse para O DISCURSO DO REI.

Tentarei, ao máximo, assistir os outros filmes e postar minhas opiniões aqui.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O mundo mágico de Escher

Vale a pena visitar a exposição “O mundo mágico de Escher”, em cartaz no CCBB do Rio de Janeiro até 17 de março. Se você acha que não conhece Escher, pode ser que você conheça, mas não conheça. E isso não é paradoxal. Veja esta cena de A ORIGEM (Inception, Christopher Nolan, EUA, 2010) - se possível, ignore que ela está em inglês com legendas em francês. Tentei, em vão, achar outra mais adequada.

A Escada de Penrose em questão é um exemplo de espaço impossível (portanto, uma espécie de paradoxo). No filme, a confusão que esta impossibilidade gera é uma arma contra os sonhadores incautos que são assaltados por Don Cobb e sua turma. Repare que a única forma desta figura existir no espaço é a revelada no final desta sequência, ou seja, quebrando a sua continuidade aparente. É uma escada que existe, mas não existe.

Segundo a Wikipédia, a Escada de Penrose foi concebida pelos matemáticos Lionel e Roger Penrose (pai e filho), entretanto, foi imortalizada justamente por M.C. Escher, o artista gráfico homenageado pela referida mostra, na sua gravura Ascending and Descending, que, para reforçar o paradoxo, coloca vários bonequinhos subindo e descendo degraus impossíveis como que eternamente.



O acervo da mostra está riquíssimo, abrangendo um vasto período de sua carreira. Além dos seus famosos espaços impossíveis, Escher era também fascinado pelo que se chamava divisão regular do espaço. Suas gravuras simétricas são tão incrivelmente meticulosas, que impressionam por terem sido feitas à mão e não por um computador de última geração.
Destes modelos, a que mais me impressionou (confesso, mais pela "mensagem" que ela traz sobre Criação e harmonia, do que propriamente pela geometria) foi a que segue, chamada Verbum:



Outra espantosa é esta (High and Low) em que ele brinca com simetria e paradoxo, levando-os a um extremo que é simplesmente fascinante:



Escher dizia (vale a pena ver o filme de 1 hora de duração, sobre sua história e sua obra, que é exibido repetida e ininterruptamente na exposição) que o que o fascinava em seu trabalho era a sensação de prazer estético que a harmonia daquelas formas simétricas lhe causavam. Ele não era matemático de formação, mas obviamente era um profundo conhecedor da mesma, uma vez que, como fica claro em muitos de seus rascunhos e anotações espalhados pela mostra, isto era necessário para que chegasse ao resultado desejado, que, segundo ele, sempre estava aquém do imaginado. Aprazia-lhe também a sensação de continuidade, de eternidade, que essas figuras traziam, chegando a afirmar em carta a um amigo que se espantava das pessoas não perceberem que a matemática e a poesia tinham a mesma origem. E é bonito, mas de uma forma melancólica, um momento em que ele diz que preferia a abstração da harmonia matemática que lhe inspirava ao caos do mundo real (reproduzo esta citação de memória, portanto, pode haver algum equívoco, mas a idéia, pelo que lembro, era bem essa).

Mais intrigante ainda é ver esta imagem (reitero, feita à mão):



E perceber que era este o efeito que ele pretendia:



Ok, o pensamento de que ele deveria ser vítima de um baita TOC é inevitável. E, sim, o excesso de preto-e-branco causa certo enfado à retina (até há algumas gravuras coloridas, mas a esmagadora maioria segue o padrão). Entretanto, a genialidade indiscutível do homenageado supera tudo isso.

O Mundo Mágico de Escher
Local: Centro Cultural Banco do Brasil - Rio de Janeiro
Data: De 18 de janeiro a 27 de março
Horário: Terça a domingo, das 9h às 21h
Local: Salas A a I e Pátio da Rua Direita – 1º andar | Rua Primeiro de Março, 66 - Centro
Agendamento de visitas monitoradas: Segunda a sexta, das 9h às 18h | Telefones: (21) 3808-2070 e 3808-2254
Recepção/Informações: Terça a domingo, das 9h às 21h | Telefone: (21) 3808-2020
Classificação: Livre
Entrada Franca

PS: Pode-se ver as imagens em um tamanho maior clicando nelas

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Sobre o filme "Além da vida"


Tem uma história que circula na internet há algum tempo que narra um episódio bastante curioso sobre, entre outras coisas, uma certa sincronicidade que parece permear alguns momentos de nossas vidas. Ela seria verídica e teria sido narrada pelo Rabino Issocher Frand em uma de suas palestras. É a história de Moisés (ou Mochê, em algumas versões), um bem sucedido empresário judeu, que, em uma viagem de negócios a Israel, decidiu, entre uma reunião e outra, fazer um lanche rápido numa pizzaria da cidade. Lá chegando, encontrando-a um tanto mais cheia do que de costume, demonstrou certa angústia, tendo em vista o seu horário apertado, o que teria sido percebido por um dos senhores que estava na fila para comprar. O senhor, então, após ouvir Moisés narrar a sua urgência, oferece ao mesmo o seu lugar na fila, de forma que dentro de alguns instantes, Moisés já estava livre para sua reunião. Entretanto, após uns breves minutos de caminhada, Moisés ouve um ensurdecedor estrondo, e percebe estupefato, que a pizzaria de onde saíra havia pouco por generosidade de um desconhecido tinha ido pelos ares em virtude de um ataque terrorista. Sem pensar duas vezes, Moisés imediatamente se dirige de volta ao lugar do desastre a fim de tentar socorrer aquele que, com um gesto simples de gentileza, havia, involuntariamente, lhe salvado a vida. Após muito procurar, Moisés encontra o seu bemfeitor vivo em um dos hospitais da cidade, um tanto ferido, mas sem risco de vida. Em conversa com seu filho, como forma de gratidão, deixa seus contatos nos EUA, onde vivia, para que entrassem em contato, caso o pai precisasse de alguma coisa. Cerca de um mês depois, Moisés recebe uma ligação do filho de seu benfeitor, informando que o pai necessitava de uma delicada intervenção cirúrgica que era melhor realizada em um hospital em Boston e que eles não poderiam arcar com todas as despesas. Moisés, então, não mede esforços para retribuir ao generoso senhor a bênção que recebera cerca de um mês antes e financia a vinda do mesmo bem como a sua cirurgia em Boston. Não satisfeito, decide acompanhar pessoalmente o procedimento, viajando, naquela manhã de terça feira, de Nova Iorque para Boston. Por este motivo, Moisés não estava trabalhando em seu escritório no 101º andar do World Trade Center, naquela manhã fatídica de 11 de setembro de 2001.
Lembrei dessa história vendo ALÉM DA VIDA. Não que o filme a reproduza ou traga alguma lição sobre as vantagens metafísicas da gratidão e do altruísmo. Absolutamente não. É um filme sobre este fenômeno tão misterioso quanto aterrador, que é a morte. Contudo, não é um filme mórbido ou assustador, mas certamente um que lança sobre a iniludível um olhar delicado e sábio próprio de um senhor de quase 81 anos, como o de seu diretor, Clint Eastwood, que certamente deve se relacionar com a mesma de maneira muito mais presente do que este que vos tecla.
O filme narra a história de três personagens que, de alguma maneira, se relacionaram com a morte de forma significativa. Marie (interpretada pela não menos que belíssima Cécile De France), uma renomada jornalista francesa que após uma experiência de quase-morte no tsunami na Ásia experiencia um novo paradigma de vida. Marcus, menino introvertido e inseguro, cujo irmão gêmeo, mais extrovertido e confiante, morre inesperadamente. E George (Matt Damon, competentíssimo como sempre), médium que, após uma carreira extenuante como vidente, nada mais deseja do que uma vida normal. E esta relação de cada um deles é bastante arquetípica quanto a maneira, em geral, com que as pessoas lidam com a morte.
Marie simboliza o materialista mais ligado às coisas do dia-a-dia que passou por uma experiência místico-espiritual e encontra resistência na sua vida social à nova concepção de vida que passou a experimentar. Marcus é a criança que surge em cada um de nós quando perdemos alguém que amamos e confiamos sendo bastante simbólica a sua busca por se comunicar com o irmão falecido, esbarrando inevitavelmente com inúmeros charlatães, como é bastante comum entre aqueles que não se conformam com o ocorrido. Ao mesmo tempo, a ingenuidade de Marcus serve ainda como um interessante mecanismo de controle de veracidade das comunicações uma vez que ele não tem qualquer preconceito quanto as diversas correntes espiritualistas que busca, estando livre de qualquer modelo pré-concebido do que seja a realidade da vida após a morte, o que, por conseqüência, o deixa livre para avaliar a qualidade das comunicações que recebe sem se deixar levar pela auto-sugestão. E finalmente, George, um médium genuíno que tem dificuldades de conciliar suas faculdades anímicas com a rotina do homem comum que gostaria de ser, uma vez que, ao que parece, as pessoas que o cercam somente parecem dispostas ou a o idolatrarem, ou a o temerem ou a tentarem se aproveitar dele. É interessante a opção por mostrar justamente o período em que o personagem experimenta uma espécie de “aposentadoria voltuntária”, em que está mais reflexivo quanto ao dom que possui, considerando-o uma maldição, o que certamente potencializará uma eventual catarse futura.
Toda a narrativa é construída sem pressa, com bastante sensibilidade e delicadeza, apresentando aos poucos os personagens e suas histórias. Merecendo destaque a sequência inicial do Tsunami (não tanto pelos efeitos especiais que, creio, poderiam ser um pouco mais realistas – penso haver enxergado algumas pessoas transparentes fugindo da onda) que consegue criar um clima de tensão justamente por demorar-se na ambientação da locação paradisíaca e tranqüila onde aquela tragédia apocalíptica, quase absurda, aconteceu. Vamos assistindo Marie desfilar por aquelas ruas tranqüilas e bucólicas extremamente penalizados por sabermos o que acontecerá dentro em pouco e não é à toa que também neste momento se crie uma identificação com uma criança, uma vez que nada nos soa mais anti-natural e injusto do que uma tragédia dessas vitimar um ser tão puro e inocente. Eastwood desfila ainda a sua elegância ao elevar a câmera para o céu imediatamente após a morte da outra criança, cortando para um avião em pleno vôo como a remeter à lúdica noção de que os que morrem “vão para o céu” - como invariavelmente é explicado o fenômeno da morte aos pequenos, que em sua pouca capacidade de abstração não raro crêem que tal viagem se faz de avião. Sem mencionar que no citado vôo estão outros personagens, ou seja, o encadeamento e o corte servem organicamente às duas narrativas.
Envolvendo cada uma dessas histórias há uma sutil sincronicidade que me lembrou a história contada pelo rabino. Mesmo estando cada personagem em um país diferente (Marie na França, Marcus na Inlgaterra e George nos EUA) desde o início vamos aguardando o momento em que eles se encontrarão e, obviamente (e isso não é nenhum spoiler), que isso acontece em um dado momento do filme graças a algumas pequenas coincidências, muito embora, é certo, coincidências não tão contundentes (mas não menos importante) quanto a da história de Moisés. Um pouco do arco dramático de cada personagem depende deste encontro e, no final, após toda demonstração de talento do Sr. Eastwood para contar uma bela história, não faz tanta diferença assim que isso se dê nos poucos minutos finais da projeção. Já estamos absolutamente seduzidos por aqueles personagens e, sim, amadurecemos um pouco com a trajetória de cada um deles.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Se

Aos que ainda não viram, fica a sugestão como reflexão para este ano que está começando.


SE

Se, ao final desta existência,
Alguma ansiedade me restar
E conseguir me perturbar;
Se eu me debater aflito
No conflito, na discórdia...

Se ainda ocultar verdades
Para ocultar-me,
Para ofuscar-me com fantasias por mim criadas...

Se restar abatimento e revolta
Pelo que não consegui
Possuir, fazer, dizer e mesmo ser...

Se eu retiver um pouco mais
Do pouco que é necessário
E persistir indiferente ao grande pranto do mundo...
Se algum ressentimento,

Algum ferimento
Impedir-me do imenso alívio
Que é o irrestritamente perdoar,

E, mais ainda,
Se ainda não souber sinceramente orar
Por quem me agrediu e injustiçou...

Se continuar a mediocremente
Denunciar o cisco no olho do outro
Sem conseguir vencer a treva e a trave
Em meu próprio...

Se seguir protestando
Reclamando, contestando,
Exigindo que o mundo mude
Sem qualquer esforço para mudar eu...

Se, indigente da incondicional alegria interior,
Em queixas, ais e lamúrias,
Persistir e buscar consolo, conforto, simpatia
Para a minha ainda imperiosa angústia...

Se, ainda incapaz
para a beatitude das almas santas,
precisar dos prazeres medíocres que o mundo vende...

Se insistir ainda que o mundo silencie
Para que possa embeber-me de silêncio,
Sem saber realizá-lo em mim...

Se minha fortaleza e segurança
São ainda construídas com os materiais
Grosseiros e frágeis
Que o mundo empresta,
E eu neles ainda acredito...

Se, imprudente e cegamente,
Continuar desejando
Adquirir,
Multiplicar,
E reter
Valores, coisas, pessoas, posições, ideologias,
Na ânsia de ser feliz...


Se, ainda presa do grande embuste,
Insistir e persistir iludido
Com a importância que me dou...

Se, ao fim de meus dias,
Continuar
Sem escutar, sem entender, sem atender,
Sem realizar o Cristo, que,
Dentro de mim,
Eu Sou,
Terei me perdido na multidão abortada
Dos perdulários dos divinos talentos,
Os talentos que a Vida
A todos confia,
E serei um fraco a mais,
Um traidor da própria vida,
Da Vida que investe em mim,
Que de mim espera
E que se vê frustrada
Diante de meu fim.

Se tudo isto acontecer
Terei parasitado a Vida
E inutilmente ocupado
O tempo
E o espaço
De Deus.
Terei meramente sido vencido
Pelo fim,
Sem ter atingido a Meta.

Hermógenes


paz.