domingo, 26 de junho de 2011

Guerra e paz

O dia começou cedo em Lugano, cidade no sul da Suiça, fronteiriça com a Itália, região que se convencionou chamar “Suiça italiana”. Deixamos o Hotel Walter, bela construção de 1888 à beira do lago, por volta das 9 horas da manhã com destino à Itália setentrional, mais precisamente às cidades de Porretta Terme e Pistoia, onde, cerca de 66 anos antes, uma parte da Força Expedicionária Braseileira, instalou-se em campanha contra a Alemanha. Na excursão um dos ex-combatentes, o 3º Sargento do 4º Pelotão da 2ª Companhia do 9º Batalhão de Engenharia da mencionada Força Expedicionária, nonagenário, que, desde então não havia mais pisado naquelas localidades, meu avô.

A viagem foi tranqüila, algo em torno de 4 horas de duração, pouco sentidas em virtude das inspiradoras paisagens da Lombardia e da Emilia-Romagna, embora o tráfego pelas rodovias fosse extremamente intenso. A ordem era seguir até as proximidades de Bologna e, dali, pegar a secundária rota SS64, que nos levaria a Pistoia, passando por Porretta Terme. Não sem uma certa confusão, rapidamente resolvida, conseguimos encontrar a mencionada estrada secundária e em instantes meu avô já revia indicações em placas de locais que ele não pisava há 66 anos: Silla, Bombiana, Abetaia...

Ao passar por Porretta Terme, pediu para parar. Entramos pela cidade e, como era de se esperar, não era possível reconhecer muita coisa. Não por qualquer problema de memória, meu avô é das pessoas mais invejavelmente lúcidas que conheço, mas porque, obviamente, a cidade havia mudado um bocado ao longo das últimas 6 décadas. Estacionamos próximo ao imponente prédio da Prefeitura de Porretta Terme e, como estivesse próximo à hora do almoço, primeiro nos preocupamos em atender a esta demanda para depois explorarmos a cidade.

Prefeitura de Porretta Terme
No restaurante em que aportamos havia uma coleção de fotos da antiga Porretta Terme, provavelmente anteriores, inclusive, à própria Guerra. No meio daquelas fotos divisei uma construção que muito se assemelhava às descrições do que meu avô dizia ser um antigo hotel desativado, utilizado por seu batalhão como abrigo e centro de operações. Mostrei-o e ele confirmou fazendo a ressalva de que, durante a guerra a construção era pouco mais que simples escombros. Disse que suas janelas haviam todas sido retiradas para que sua madeira fizesse as vezes de lenha para que os soldados pudessem melhor se aquecer e que, nos fundos, havia uma pedreira que era permanente alvo de bombardeios.

Foto do Hotel Roma em restaurante em Porretta Terme
Dali, retornamos ao prédio da prefeitura onde havia um centro de informações turísticas. Queríamos um mapa da região para melhor localizarmos os povoados em que meu avô trabalhou na manutenção de estradas e pontes e na procura por minas terrestres. Fomos atendidos por um gentil casal que prontamente nos deram os mapas e que nos informaram que o referido hotel (cuja foto acima lhes mostramos) ficava a pouco metros dali, no fim daquela rua, à esquerda. Quando contamos que meu avô havia estado ali, junto à FEB, durante a guerra, ambos mostraram grande entusiasmo chegando inclusive a agradecê-lo pois provavelmente se não fosse a atuação dos brasileiros as coisas poderiam ter sido muito piores, e eles poderiam nem estar ali naquele momento. Confesso que me emocionei. Informaram ainda que no Monte Castelo, onde ocorreu um embate decisivo para a retirada dos alemães da região, havia um monumento em homenagem à FEB e aos soldados brasileiros que valia a pena ser visitado. Despedimo-nos e fomos procurar o Hotel Roma que, de fato, ficava a poucos metros dali. Moderno, restaurado e bem conservado, não perdemos tempo para fotografar meu avô à sua frente e, após, no parque ao fundo (onde havia a tal pedreira, hoje um anfiteatro com brinquedos infantis). Dali partimos para Monte Castelo e adjacências.


Fachada do Hotel Roma


Em frente ao Hotel Roma.
Fazia um dia belíssimo e a paisagem interiorana da Emilia-Romagna auxiliava a compor o emocionante e bucólico espetáculo da natureza. Passamos por Bombiana e Abetaia, onde meu avô relembrou a morte de seu amigo Ribeiro, vítima de uma das incontáveis bombas escondidas em escombros de casas. Na sua lucidez impressionante recordou-se que aquele dia era justamente o seguinte ao do aniversário de Ribeiro, o que não deixou de ser uma coincidência auspiciosa. Na volta, avistamos, ao longe, o que deveria ser o tal monumento referido pelo guia. Pegamos uma saída onde se lia a placa “Monte Castelo” e, sem surpresa, nos deparamos com o tal monumento. Em um terreno descampado, no alto de um morro, dois gigantescos arcos, entrelaçados em cruz, um voltado para cima, outro emborcado para baixo, e o sol, em toda sua plenitude, convidavam-nos a uma visita mais próxima evocando um local sagrado, de graves reflexões.

Monumento em homenagem aos soldados brasileiros da FEB em Monte Castelo
Difícil conceber que paisagem tão inspiradora já servira de locação para uma das batalhas do mais trágico evento que o mundo já conheceu. Das minúsculas flores que tapeteiam o monte ao silêncio monástico somente quebrado pelo som suave da brisa leve que volta e meia varria o capimzal, tudo ali convidava às mais belas reflexões. Entretanto, a estupidez humana é, e sempre será, cega para a transcendência de tudo o que é verdadeiramente belo - esta foi uma reflexão inevitável. Tentei, mas não consegui visualizar a terra mutilada pelos mais variados tipos de minas e bombas, nem cadáveres ou partes deles espalhados pelos arredores, essas coisas não pareciam alguma vez ter feito parte da vida daquele lugar. Todavia, aquele monumento gigantesco e uma testemunha ocular daquela história estavam ali para garantir o contrário.

Meu avô pediu permissão para bater continência em direção ao monumento, bem como em direção a Abetaia, em homenagem ao companheiro Ribeiro, que lá sucumbira. Desnecessário dizer que grande emoção tomou conta de todos nós presentes. Suas histórias sobre a guerra povoou o imaginário de filhos, netos (e provavelmente povoará os dos – por enquanto - 3 bisnetinhos), bem como dos demais integrantes de nossa imensa família. Seu diário de guerra (sim, ele o tem) é lido gerações afora. Desta forma, é difícil descrever a emoção de presenciar um momento como este. Fiquei tentando imaginar o que poderia estar se passando pela cabeça dele, mas acho que não teria capacidade nem maturidade de compreender. Só posso dizer que meu avô é amigo do tempo. Sabe vê-lo passar. Mesmo a custa de todo sofrimento (que ao longo destes 90 anos não foram poucos, afianço-vos), ele remanesceu forte e lúcido com toda candura que lhe é peculiar. E aquele momento soou para mim como uma espécie de prestação de contas. E refleti que daqui a 66 anos, se eu me vir em situação parecida e for ao menos metade da pessoa que ele é, terei sido um sujeito de muita sorte.

Homenagem aos companheiros que lutaram.
Abetaia ao fundo. Homenagem ao companheiro Ribeiro.
Dali, passamos rapidamente por Pistoia sem sequer sair do carro. Depois de tudo aquilo, certamente havia muito pouco mais a ser visto.
Para completar o roteiro, nosso destino final naquele dia era justamente Assis, a cidade onde nasceu e viveu um dos maiores baluartes da paz que este mundo já viu, São Francisco de Assis. Inspirador foi pouco.