segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Holy Motors


Quando eu era criança, cheguei a pensar que as pessoas que apareciam na televisão, viviam dentro dela e que o tubo de imagem era uma grande lente de aumento para um mundo estranhamente pequeno e dividido em canais, que a gente mudava girando o seletor. Não saberia explicar com mais detalhes o mecanismo que minha imaginação infantil concebeu para entender o fenômeno da televisão, mas lembro que algumas vezes cheguei a investigar pelas pequenas frestas de ventilação que havia atrás do aparelho, a possibilidade de pegar algumas daquelas mini-pessoas emprestadas para fazerem companhia a mim e aos meus bonecos do He-man e da Liga da Justiça nas nossas aventuras.

Outra fantasia infantil, creio que pouco depois de eu já ter uma certa noção de como as coisas funcionavam na televisão, era a de achar que a minha vida era um filme, ou até uma novela. Ficava tentando imaginar as pessoas assistindo a minha vida, o que elas pensavam, e que nesse universo paralelo eu deveria ser algum ator famoso e que deveria ser legal passar uns tempos por lá, para dar uns autógrafos, ser chamado para um programa de entrevistas, essas coisas. É claro que eu devia ter alguma noção de que era tudo fantasia porque nunca fiquei procurando a câmera, mas fiquei lembrando desses devaneios infantis quando fui assistir “Holy Motors” esse fim de semana.

Não, não é um filme fácil se se considerar a tendência da produção cinematográfica mainstream atual de não instigar o espectador a sair de sua zona de acomodação e participar da construção da obra, oferecendo de bandeja respostas e interpretações. No mínimo, a obra é uma baita oportunidade de aceitar ser desafiado a exercitar outras instâncias de nós mesmos, que o cinema sempre pode atingir, mas muitas vezes não o faz ou o faz pouco, creio que por motivos financeiros principalmente. E esta experiência, por razões humanas, deveriam ser mais acessíveis, mas eu divago, claro.

As cenas iniciais do filme acompanham um sujeito que dorme aparentemente em um quarto de hotel e que, em um dado momento, acorda intrigado com algo que aparentemente não suspeita o que seja até resolver investigar uma das paredes do quarto, decorada com papéis de parede com motivos florestais. Aí, nos damos conta, junto com ele, de que um de seus dedos é uma espécie de implante metálico que, na verdade, é uma chave para uma pequena fechadura oculta nesta parede, que, aberta, leva a um antigo cinema. O sujeito entra e se depara com um público assistindo a uma película enquanto uma criança caminha por um dos corredores, esgueirada por um imenso cão negro.

Dali, corta para um magnata saindo placidamente de sua mansão cinematográfica para o trabalho, de manhã, adentrando numa limousine e, lá dentro, após alguns telefonemas, aparentemente de negócios, começa a pentear uma sugestiva peruca de fios prateados. A limousine para às margens do Sena (o filme se passa na sempre majestosa Paris) e, de lá, o sujeito sai caracterizado como uma pedinte idosa (de cabelos prateados) e vai esmolar, salvo engano, na Pont Alexander.

Que tal? Pareceu confuso? Daí em diante o que vemos é um dia na vida dessa figura trafegando por Paris em sua limousine, assumindo temporariamente os personagens mais diversos, desde um senhor idoso à beira da morte, um assassino, e até uma figura grotesca que circula por esgotos e cemitérios e come dedos de mocinhas desavisadas. Tudo, claro, filmado com muito(s) estilo(s) e inspiração. Aos poucos, vamos nos dando conta que provavelmente aquele é o universo das pessoas “que vivem dentro da tela” e, por isso, me remeteram às minhas aventuras imaginárias da infância. Só que em uma versão adulta e estilizada, claro.

Entendo que o mote principal do filme é uma grande homenagem ao cinema, apresentando um elegante mosaico de personagens e estilos cinematográficos, além de certamente fazer diversas provocações críticas às diretrizes que a sétima arte vem tomando atualmente, mas com muita metáfora e poesia (pense na dança erótica das criaturas virtuais). Existe até espaço para uma alusão a videoclipezação do cinema, com um intervalo musical no melhor estilo plano sequência a la Beirut e Banda mais bonita da cidade.

Subrepticiamente entendo que o filme funcione como uma ode ao ofício dos atores. Denis Lavant revela-se absolutamente genial na construção do Sr. Oscar e de seus tipos, nos dando alguma dimensão do quão elaborado deve ser o trabalho desses profissionais na composição de seus personagens. Neste sentido, fica evidente o quanto a atuação é uma grande obra de arte a depender da inspiração e talento do artista que a desempenhe.

Ainda, a película também serve, é claro, a belas reflexões sobre as vidas das pessoas “fora da tela”. Desde questões como o excesso de “compromissos” da vida moderna até o sentido “da coisa toda”, cada fotograma abrange uma miríade de possibilidades interpretativas (pense nas lápides do cemitério de Pére Lachaise com a inusitada inscrição “Visite meu website” nos epitáfios). E é extremamente inspirador que o camaleônico Sr. Oscar responda, quando indagado sobre o porquê de levar a frente aquela tarefa que se revela tão extenuante, que a sua motivação maior é a “beleza do gesto”. Dá o que pensar, não é verdade?   

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Sobre pais e anjos


Roberto Carlos certamente estava muito inspirado quando escreveu essa canção. Acho que ela toca tão profundamente porque, de uma maneira geral, todos os pais, em algum momento, falaram de anjos para os corpos febris de seus filhos. E acho genial a forma dele tratar esse amor como mentira. Pode ser um paradoxo, mas é poesia. E é lindo.

Isso tudo por que eu queria deixar aqui registrado meu apelo ao amor nesta relação tão sagrada, porém não menos complexa, que é a existente entre pais e filhos. Neste dia que marca os 7 anos da morte de meu saudosíssimo pai posso dizer que ele ainda é o meu maior e melhor amigo e que, felizmente, eu sempre soube disso de alguma forma. Eu sei que nem todo mundo tem/teve uma boa relação com o seu, então fica o convite para ressignificá-la, ao menos para você.



terça-feira, 23 de outubro de 2012

Imagine só

P. S.: "Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro. Arte não tem pensa: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Isso seja: Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades".
[Manoel de Barros salve salve]

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Pistas sobre mim


Eu não tenho noção de nada. Eu só sei das coisas que eu penso, mas mesmo assim, muito pouco. Às vezes parece que tudo é eco, não há nada definido, nem definitivo. Das pessoas e das coisas, então, a única referência que eu tenho é que ensaiam engatilhar processos dentro de mim. Só que com meus próprios códigos, com meus próprios signos. De tão improvável, é mais plausível que a comunicação seja impossível. É isso. Sou egoísta. Sou auto centrado. Busco somente me sentir bem. Sou um hedonista, meu bem. E quem não é, nestas circunstâncias? Não conheço ninguém em sã consciência que deseje o próprio azar. Até para o masoquista, dor é prazer.

Mas são só suposições. Pode ser que tudo não passe de uma grande humildade em se enxergar. Talvez eu seja mesmo um anjo caído injustiçado por Deus que, na verdade, morre de inveja de mim. Pode ser que, na verdade, eu tenha total consciência do que acontece comigo, dos automatismos viscerais aos ciclos cósmicos dos meus corpos astrais, passando por todos os sentimentos, emoções e sensações, devidamente catalogados e classificados taxonomicamente, que eu sei reconhecer, gerenciar e manipular, e que eu saiba objetivamente a solução para tudo e para todos, conciliando o meu bem com o bem comum.

Mas, quem pode me garantir? Quem pode me desdizer?

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Pacificação

Quer acabar com a violência? Pois comece em você mesmo. 

Reduza as ambições. 
Controle seus ódios.
Apague seus ressentimentos.
Cultive honestidade.
Fale a verdade.

Faça o maior bem que puder.
Apague as lágrimas dos que choram.
Ampare os que estão sofrendo.
Perdoe aqueles que, por ignorância e inferioridade, o feriram.

Reduza suas tensões.

Alegre-se com a felicidade dos outros.
Pense no bem dos outros antes de pensar no seu.

Que meu coração em Paz propicie Paz a todos.


Professor Hermógenes (Livro Deus investe em você, página 86.)




quinta-feira, 8 de março de 2012

ou catador de poesia (ou ainda: Salve o poeta Manoel de Barros!)

I. Matéria de Poesia
I.

Todas as coisas cujos valores podem ser 
disputados no cuspe à distância 
servem para poesia.

O homem que possui um pente 
e uma árvore 
serve para a poesia.

Terreno de 10 x 20, sujo de mato —  os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia

As coisas que levam a nada 
têm grande importância.

Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar 
na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
por exemplo, pedras que cheiram 
água, homens 
que atravessam períodos de árvore, 
se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma 
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde 
dos pássaros, 
serve para poesia.

As coisas que os líquenes comem
      — sapatos, adjetivos — 
têm muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia—

Os loucos de água e estandarte
servem demais

O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso

Tudo que explique 
   o alicate cremoso
   e o lodo das estrelas
serve demais da conta

Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
   a lagartixa da esteira
   e a laminação dos sabiás
é muito importante para poesia

O que é bom para o lixo é bom para a poesia

Importante sobremaneira e a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
   tem muitas repercussões
com um algibe entupido de silêncio
   sabe a destroços

As coisas jogadas fora
têm grande importância
— como um homem jogado fora

Aliás é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens de poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho.




Manoel de Barros


(Barros, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo. Editora Leya. 2010)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O sentido da vida

Pergunta: Qual é o sentido da vida? 
"Se você toma a palavra "sentido" como sendo "objetivo", o sentido da vida, certamente, não pode ser a morte. Se a morte é o sentido da vida, então, evidentemente, não preciso nascer - o objetivo sendo a minha ausência. Se me encontrava ausente antes de nascer, não preciso nascer para não existir. Assim, não posso dizer que a morte seja o objetivo da vida.

Nem posso dizer que outra coisa mais do que a própria vida seja o objetivo da vida. Por consequinte, o seu sentido ou objetivo tem de ser encontrado dentro da própria vida. Eu diria que o objetivo da vida é apenas viver. A morte acontece, mas não é o objetivo da vida. E, desde que o sentido da vida é viver, a pergunta seguinte passa a ser "o que é viver?".

Não posso dizer que estou vivo quando não estou vivo para a realidade da vida. Não estar vivo para a realidade da vida é sonhar, viver uma vida de sonhos, falsa, o que significa não viver. Por essa razão, o sentido da existência deve ser viver uma vida verdadeira. Viver é o sentido. Viver implica em uma vida com significado; de apego à verdade, uma vida onde as realidades são confrontadas.

Estar vivo, então, é estar vivo quanto às realidades da vida, às realidades de minhas buscas e de minhas lutas. Quão desejáveis são os objetivos que procuro atingir? Até que ponto serão capazes de prover o que desejo? Será que me farão uma pessoa feliz e realizada? Para que eu possa estar vivo para essas realidades, os objetivos que busco devem ser examinados e entendidos apropriadamente.

Devo também considerar a pessoa que está lutando - eu. Quão válido é lutar? Lutar implica uma pessoa insatisfeita, uma pessoa insatisfeita consigo mesma. Quão válida é essa auto-insatisfação? Com o que eu não estou satisfeito? Estou insatisfeito com o meu físico? Com a capacidade intelectual de meus pais? Estou insatisfeito com a minha competência? Estou insatisfeito com a minha mente, minha capacidade de pensar, minha memória e minhas emoções? Com o que não estou satisfeito? Se existe uma auto-insatisfação, tudo isso deve ser examinado.

Se essas realidades não são examinadas e eu busco satisfação, a minha busca não tem sentido. Essas perguntas cruciais devem ser respondidas para que possamos encontrar o sentido da vida. Devo ter um domínio sobre essas realidades. E se eu não estou satisfeito comigo mesmo, se todos esses fatores, ou mesmo alguns deles, que me constituem, não são considerados satisfatórios, como posso remediar essa situação? Será que os vários objetivos que busco me ajudarão? Terei eu, até mesmo, algum objetivo capaz de alterar a situação?

Mesmo se estivermos insatisfeitos com o nosso corpo e sua aparência, ou com nossa mente, nós não despendemos todo o nosso tempo tentando mudá-los. Isso porque também aspiramos a muitos outros fins na vida, tais como poder ou dinheiro, fama, influência e controle. Podemos esperar a mudança de nosso corpo ou mente através de alguns desses objetivos? Eu penso que não. Até agora ninguém realizou tal coisa.

Suponha que você tente mudar seu corpo, como irá fazê-lo? E mesmo que consiga fazê-lo, por quanto tempo irá conservá-lo? Tais objetivos são sem sentido. Você não pode esperar mudar o seu corpo para sempre, porque ele tem suas intrínsecas limitações. Por consequinte, ninguém vai, satisfatoriamente, mudar o seu corpo.

O que significa mudar a mente? É com a mente que estou insatisfeito? O problema é que me encontro insatisfeito comigo mesmo, não com o corpo ou com a mente. Se eu sou o corpo e a mente, então não há uma maneira efetiva de mudá-los. E se eu sou muito mais do que o corpo e a mente e estou insatisfeito comigo mesmo, então devo examinar minuciosamente o que é esse ser.

Porque as realidades envolvem aquele que com elas lida - eu, devo, em primeiro lugar, ter um comando sobre a realidade que me diz respeito. Tudo o mais vem depois e tomará conta de si mesmo. Devemos também entender as realidades do mundo, mas o sentido da vida começa comigo. Não vejo nenhum outro sentido. Nascer como uma criança significa que meu corpo está incompleto, ainda não desenvolvido. Assim como um botão tem de florescer, o corpo de um bebê tem que se tornar adulto. Por essa razão, o sentido da vida pode ser apenas viver - crescer. A vida continua, mas primeiramente, como um ser humano com um corpo de criança, tenho que fisicamente me tornar um adulto. E desde que tenho uma mente pensante, eu deveria presumivelmente ter uma certa disciplina para aprender - o que também é crescimento. Conseqüentemente o crescimento em si mesmo seria o sentido da vida.

Uma vez que eu tenha crescido fisicamente, sou considerado um adulto. Entretanto, há uma outra área de crescimento denominada crescimento interior, crescimento emocional ou crescimento moral, que está centrada em minha vontade. Este crescimento, também, é o sentido da vida. Tenho que crescer até atingir a minha realização. O sentido da vida, portanto, é tornar-se um ser humano pleno e completo.

Obviamente, maturidade implica na estima de nós mesmos e do mundo. Se nos sentimos perseguidos pelo mundo, esse senso de perseguição vem ou de nós mesmos ou do mundo externo. Se o mundo não me oprime mais do que a outrem qualquer e, ainda assim, me sinto perseguido, então eu deveria saber que o sentimento de perseguição vem de mim mesmo.

Conquanto essa condição possa ser chamada de doença mental, eu a chamo de imaturidade emocional porque o problema é próprio de uma criança, ainda que a pessoa com o problema tenha um corpo de adulto e, até certo grau, uma mente adulta. As situações vividas por essas pessoas são, todas, condizentes com a fase adulta. Ela não é mais protegida por seus pais, nem é mais necessário este tipo de proteção. A pessoa, fisicamente, biologicamente, é um adulto. Pode já ter se casado, ser pai/mãe ou avô/avó. Mesmo assim a criança de seu interior ainda parece ter uma influência sobre a pessoa, governando seu comportamento e reações frente ao mundo.

O que estou dizendo é que algo que aconteceu a essa pessoa, quando criança, não foi trabalhado. A percepção infantil é inevitável. O problema é comum a todos, não há exceções. Durante o seu desenvolvimento a criança descobre um ego. No segundo ano de sua vida, esse ego é absoluto. É por isso que o segundo ano de vida de uma criança é às vezes chamado como o "Terrível Dois" (em inglês, Terrible Two). No terceiro ano, porém, a criança descobre outros egos, algo que é também muito humilhante e submisso.

Como criança, você constata que sua mãe tem seu próprio ego e seu pai, o dele. Todos à sua volta têm um ego e quando você vai para a escola, está cercado por nada mais que egos - cada um dos quais você considera bastante desconcertantes, pois você acaba de sair de um ego absoluto. Um ego absoluto é como o ego do Senhor. Partindo desse ego, você se encontra em um estado onde reconhece todos esses egos - sem ter nenhum dado para lidar com eles.

A descoberta de todas essas mentes e idéias conflitantes é um estágio muito confuso de seu desenvolvimento. Existe também um natural temor. Você se sente ameaçado por todos que o rodeiam por serem todos tão grandes. Você se admira, como se admirou o jovem escolar em Village Schoolmaster, de Goldsmith, que tanto material pudesse sair da cabeça tão pequena do professor. Esse é exatamente o ponto de vista de uma criança quando se confronta com os gigantes do mundo, todos eles parecendo saber tanto.

A criança não sabe que essas pessoas são igualmente confusas. Ela julga que todos são o máximo em tudo e os respeita a todos, ainda que eles, também, tenham de lidar com os seus próprios problemas da infância. Caso não os tenham trabalhado, carregam necessariamente dento de si uma criança. Um pai de uma criança carrega sua própria criança, o mesmo ocorrendo com a mãe da criança. Conseqüentemente, cada um é, ao mesmo tempo, uma criança e um adulto. Essa pessoa criança-adulta está presente em toda sociedade.

Em tal sociedade, há naturalmente prováveis situações conflitantes e a criança tem que lidar com todas elas. Baseada nessas situações, ela aprende a confiar deveras no mundo ou, definitivamente, a não confiar. Uma criança que muito confia pode ser abusada por outro, ao passo que uma criança que não confia no mundo vai pensar: "O mundo está sempre lá fora para me pegar". Esta resposta conduz a problemas que os psicólogos chamam de distúrbios de caráter.

Um problema comum é o sentimento de culpa. Uma criança cujos pais brigam todo o tempo pode pensar que é a responsável e sentir-se culpada. Tais conflitos criam uma baixa auto-estima e levam a uma espécie de neurose, um problema psicológico que todos, em certo grau, têm. Essa desordem continua pela vida afora, arruinando também a percepção do adulto.

Quando você vai tratar dessa desordem? A menos que olhe para você mesmo, como irá lidar com isso? Eis aqui onde entra a maturidade emocional. Você pode resolver problemas de infância através do entendimento de todo o processo, reconhecendo tudo que aconteceu e observando o passado que foi enterrado. Você apenas aceita o que aconteceu antes, bom ou ruim. Tratar de problemas que existem, referentes ao passado, é ter uma certa maturidade. É um modo maduro de ver-se a si mesmo.

Então, mais uma vez, você olha o mundo do mesmo modo. De fato, se você pode simplesmente aceitar seu próprio passado, então lhe será mais fácil aceitar também o mundo. O mundo pode apenas existir. O modo maduro de olhá-lo é não desejar o seu controle. Nem você pode controlá-lo. Se você quer controlar o mundo, mas é incapaz, você se sente controlado. Você pode agir no mundo, mas não pode ter sobre ele um controle absoluto. Um dos traços mais predominantes nas pessoas é este: a tentativa de controlar de várias formas o mundo. Isto é o que chamamos de imaturidade. Que controle você tem? Não tem nenhum; pode apenas acomodar as coisas, entender e fazer o que puder. Certos poderes podem lhe ter sido dados para fazer alguma coisa: compreender, organizar, reorganizar e reunir tudo. Todo mundo tem certos poderes, e com esses, você faz o melhor que pode.

Aceitação não é meramente engolir tudo; é a aceitação de uma dada situação como ela é, fazendo o que é apropriado àquela situação. Assim, agir é ganhar uma maturidade que é a maioridade emocional. Esta maturidade pode ser estendida mais adiante, incluindo um modo maduro de entender os valores, com referência à nossa interação com o mundo.

Começar a fazer perguntas tais como: "Por quê não tenho nenhum controle?", pode também conduzir a uma apreciação de Isvara, o Senhor. Não precisamos subordinar essa apreciação à maturidade, mas pode ser visto também dessa maneira; nessa aceitação de Isvara reside um outro aspecto de um modo de viver maduro. Aceito Isvara, o Senhor, porque não tenho nenhum controle. Quando não tenho nenhum controle, então aprecio Isvara. Pode haver, por essa razão, uma certa entrega com referência ao que aconteceu no passado e ao que acontecerá no futuro. E faço o que posso. Se há uma apreciação de Isvara, há uma ordem, há um sentido na vida. As coisas estão acontecendo e, por conseguinte, aceito o que vem para mim e faço o que é para ser feito.

Eu questiono essa apreciação de Isvara sob o aspecto de Karma Yoga, o que pode ser considerado como uma vida religiosa, que é também parte do viver-se com maturidade, desde que, naturalmente, a religião seja apropriadamente entendida. Isvara é para ser entendido apropriadamente e, na medida que temos esse entendimento, está a nossa maturidade.

Maturidade emocional implica em um entendimento das estruturas dos valores e prioridades. Nossas prioridades devem ficar muito claras em referência aos valores. Há valores universais e há outros determinados valores, tais como um valor pelo dinheiro, pelo poder, nome, influência ou controle, que são valores mas não são, necessariamente, universais.

Uma pessoa pode ser feliz sem dinheiro, por exemplo, ao passo que valores como falar a verdade e não ferir os outros são valores universais. Há uma série de outros valores universais, como não roubar, compaixão, amizade e servir ao próximo. Estes são, todos, valores que respeitamos com referência ao comportamento dos outros.

Quero que todos sejam amistosos comigo, não representando nenhuma ameaça para mim, ajudando-me quando necessário e dizendo-me somente a verdade. Quero que ninguém me roube ou minta para mim. Tudo isso eu valorizo, significando que sou limpo de caráter, absolutamente ético no que diz respeito ao comportamento das outras pessoas. Nisso sou absoluto. (Entretanto, quanto ao meu próprio comportamento, tenho alguns problemas). Sei que você também espera de mim o mesmo procedimento. Isto significa que tenho valores, ainda que eles possam não ser propriamente entendidos.

O valor dos valores geralmente não é entendido. Os valores são conhecidos por mim. Sei o que são, mas o valor de cada um dos valores não foi assimilado. No que se refere ao valor dos valores, preciso ser educado. Ou eu mesmo me educo, ou torno-me educado com a ajuda de alguém.

Se alguém lhe diz para falar a verdade, a coisa torna-se bem semelhante a um sermão. Você sabe bem que deveria falar a verdade. Do mesmo modo ninguém precisa dizer-lhe que não roube. Isto você também sabe muito bem. Não é necessário que ninguém lhe diga para não roubar, porque você também não deseja que a sua propriedade seja roubada por ninguém. Dessa forma, todos esses valores universais são conhecidos por você. O pregador de valores é portanto imaturo e aquele que o escuta, acenando afirmativamente sua cabeça, naturalmente, também o é.

Por quê eu não deveria roubar? Qual é o exato valor do não-furtar? Quando roubo ou firo alguém, como sou realmente afetado? Perco alguma coisa? Somente se eu tiver algo a perder, existirá um valor, caso contrário, não. Para que alguma coisa seja um valor, a sua não observância por mim deve, irrevogavelmente, me conduzir a uma perda. A compreensão da imensidade de minha perda, quando me coloco contra um valor, é que me torna maduro.

Na medida em que aprecio a minha perda, me torno maduro, o que implica educação. Tenho de conhecer o valor dos valores acidentais, como dinheiro, poder, etc. Por estarem estes outros valores muito bem assimilados, terei problemas de prioridade em termos de quais valores a serem seguidos por mim.

Por exemplo, devo falar a verdade e perder o dinheiro que ganharia recorrendo a uma mentira? Ou devo, para ter o dinheiro, lançar mão da mentira? Obviamente, tenho um conflito a respeito de como agir e, sem dúvida alguma, farei aquilo que para mim for de maior valor. Se para mim o dinheiro representar mais do que a verdade, então a educação do valor não ocorreu.

Se analisarmos esse problema prioritário particular, encontraremos novamente uma falta de maturidade. Em termos de valores e gerenciamento emocional, existe imaturidade. No que você começa a lidar com esse problema, ocorre um amadurecimento, uma tentativa de amadurecer. De outra forma, você permanece imaturo, ainda que atinja os noventa ou cem anos."
Swami Dayananda Saraswati
 
Que bela lógica, não, amigos?
Uma semana abençoada a todos!
 

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

"Millenium - Os homens que não amavam as mulheres"


Impliquei quando descobri que Hollywood iria fazer uma versão de “Os homens que não amavam as mulheres”, se já existia uma caprichada versão sueca.

Aí hoje relembrei duas coisas:
1- Jamais se deve subestimar a competência de Hollywood quando o assunto é thriller;
2- Por que se contentar com uma versão caprichada se é possível uma versão fantástica?

David Fincher, com todo respeito, dá uma baita aula para os suecos de como fazer um thriller adaptado ser interessante, respeitando a essência, captando a atmosfera, todavia sem soar excessivamente literal.

Sei que corro o risco de soar injusto. Já faz muito tempo que vi o sueco, mas lembro bem de algumas sensações que tive. A primeira foi de surpresa. Conhecia Conheço muito pouco do cinema sueco e ver uma obra daquela qualidade fora de Hollywood foi bem surpreendente. Sim, eu sei que, apesar de sueco o filme segue a cartilha de Hollywood (o que me faz pensar sobre como seria um thriller que não a seguisse, mas eu divago). Sim, eu sei que existe cinema fora de Hollywood. Só o que quero dizer é que o filme me divertiu e acho que, no fim das contas, apesar das “críticas ao sistema” que a obra traz, seu principal objetivo é, sim, divertir. Contudo, a segunda sensação foi a de que faltou ousadia principalmente quanto a questão da excessiva literalidade.

Fincher tem a vantagem de apresentar a segunda versão (que só é vantagem se ele assistiu a original, obviamente). Possivelmente, teve tempo de analisar e apresentar soluções melhores para a adaptação (se você leu o livro e viu os filmes, pense na gritante, porém eficiente mudança no enigma principal, que enxugou e economizou minutos que possivelmente tornariam o final um tanto arrastado), mas isto é só uma hipótese. Fincher já deu mostras de sobra em sua carreira de que não precisa deste tipo de vantagem quando se tem o seu talento.

Quanto a questão Lisbeth Salander e suas intérpretes: Fico com Noomi Rapace. Teve algo nela que me impactou mais do que esta, de Rooney Mara, que também é excepcional, diga-se. Talvez tenha sido porque vi Rapace primeiro, bem próximo a época da leitura do livro, ou porque talvez seja melhor mesmo, mas Mara também é capaz de nuances absolutamente geniais (algo nos desvios do olhar, nos ombros curvados, mesmo quando Lisbeth usa alguns disfarces luxuosos).  Também senti falta de uma tatuagem de dragão maior e da Billys Pan Pizza, lanche preferido de Lisbeth, marotamente substituído por Mc Lanches Feliz e afins. Mas é claro que isso não é culpa de Mara.

A fotografia me remeteu a “Se7en” em inúmeros momentos e a produção de arte caprichou nas locações e cenários, muito embora a cabana de Mikael em Hedestad que imaginei (possivelmente seguindo as descrições do livro) não fosse tão clássica como a mostrada neste filme, o que tampouco retira os méritos desta frente de trabalho.

Por fim, “Os homens que não amavam as mulheres” é um filme adaptado de um livro que dispensa sua leitura prévia (que, porém, recomendo seja feita em algum momento) que não deixa nada a dever aos fãs da série e do gênero, com grandes possibilidades de se tornar um clássico, e que já me deixou ansioso para as novas versões de “A menina que brincava com fogo” e “A rainha do castelo de ar”.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Auto-notas: Medo


O medo é sempre uma ilusão, mas ainda é um mecanismo útil para a sobrevivência, o crescimento e o aprendizado. Não ter medo de morrer não significa aspirar ao suicídio, mas apenas ver a morte como um fato biológico natural da vida e, principalmente, ter a coragem do desapego.

***

Quis falar sobre a morte por que é o maior dos medos.

***

Talvez a principal função do medo seja justamente vencê-lo. Nada mais prazeroso do que dirigir-se deliberadamente para as situações que nos colocam medo com coragem, mas com uma coragem humilde, de quem conhece os próprios riscos, só que almeja patamares mais elevados. A coragem de quem sabe perder, mas que está disposto a aprender com a derrota e não só a se lamentar.

***

(Mais uma vez: O suicídio é uma opção burra porque, por motivos óbvios não nos permite aprender, nem lamentar. Isso sem mencionar que, para a maioria das teorias da sobrevivência da alma, o destino dos suicidas no Além é dos mais desagradáveis.)

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Assim, é necessário ter uma sabedoria em relação ao medo. Conhecer as nossas vulnerabilidades é o primeiro passo; tratar dos medos neuróticos, o segundo; enfrentar e crescer com os "reais", o terceiro, por que estes foram feitos para serem enfrentados e, sempre que possível, vencidos.

***

Escrevo para mim. O plural é majestático.