Quando eu era criança, cheguei a
pensar que as pessoas que apareciam na televisão, viviam dentro dela e que o
tubo de imagem era uma grande lente de aumento para um mundo estranhamente
pequeno e dividido em canais, que a gente mudava girando o seletor. Não saberia
explicar com mais detalhes o mecanismo que minha imaginação infantil concebeu
para entender o fenômeno da televisão, mas lembro que algumas vezes cheguei a investigar
pelas pequenas frestas de ventilação que havia atrás do aparelho, a possibilidade
de pegar algumas daquelas mini-pessoas emprestadas para fazerem companhia a mim
e aos meus bonecos do He-man e da Liga da Justiça nas nossas aventuras.
Outra fantasia infantil, creio
que pouco depois de eu já ter uma certa noção de como as coisas funcionavam na
televisão, era a de achar que a minha vida era um filme, ou até uma novela.
Ficava tentando imaginar as pessoas assistindo a minha vida, o que elas
pensavam, e que nesse universo paralelo eu deveria ser algum ator famoso e que
deveria ser legal passar uns tempos por lá, para dar uns autógrafos, ser
chamado para um programa de entrevistas, essas coisas. É claro que eu devia ter
alguma noção de que era tudo fantasia porque nunca fiquei procurando a câmera,
mas fiquei lembrando desses devaneios infantis quando fui assistir “Holy Motors”
esse fim de semana.
Não, não é um filme fácil se
se considerar a tendência da produção cinematográfica mainstream atual de não
instigar o espectador a sair de sua zona de acomodação e participar da
construção da obra, oferecendo de bandeja respostas e interpretações. No
mínimo, a obra é uma baita oportunidade de aceitar ser desafiado a exercitar
outras instâncias de nós mesmos, que o cinema sempre pode atingir, mas muitas vezes
não o faz ou o faz pouco, creio que por motivos financeiros principalmente. E esta experiência, por
razões humanas, deveriam ser mais acessíveis, mas eu divago, claro.
As cenas iniciais do filme
acompanham um sujeito que dorme aparentemente em um quarto de hotel e que, em
um dado momento, acorda intrigado com algo que aparentemente não suspeita o que
seja até resolver investigar uma das paredes do quarto, decorada com papéis de
parede com motivos florestais. Aí, nos damos conta, junto com ele, de que um de
seus dedos é uma espécie de implante metálico que, na verdade, é uma chave para
uma pequena fechadura oculta nesta parede, que, aberta, leva a um antigo cinema.
O sujeito entra e se depara com um público assistindo a uma película enquanto
uma criança caminha por um dos corredores, esgueirada por um imenso cão negro.
Dali, corta para um magnata
saindo placidamente de sua mansão cinematográfica para o trabalho, de manhã, adentrando
numa limousine e, lá dentro, após alguns telefonemas, aparentemente de
negócios, começa a pentear uma sugestiva peruca de fios prateados. A limousine
para às margens do Sena (o filme se passa na sempre majestosa Paris) e, de lá,
o sujeito sai caracterizado como uma pedinte idosa (de cabelos prateados) e vai
esmolar, salvo engano, na Pont Alexander.
Que tal? Pareceu confuso? Daí em
diante o que vemos é um dia na vida dessa figura trafegando por Paris em sua
limousine, assumindo temporariamente os personagens mais diversos, desde um
senhor idoso à beira da morte, um assassino, e até uma figura grotesca que
circula por esgotos e cemitérios e come dedos de mocinhas desavisadas. Tudo,
claro, filmado com muito(s) estilo(s) e inspiração. Aos poucos, vamos nos dando
conta que provavelmente aquele é o universo das pessoas “que vivem dentro da
tela” e, por isso, me remeteram às minhas aventuras imaginárias da infância. Só
que em uma versão adulta e estilizada, claro.
Entendo que o mote principal do
filme é uma grande homenagem ao cinema, apresentando um elegante mosaico de
personagens e estilos cinematográficos, além de certamente fazer diversas
provocações críticas às diretrizes que a sétima arte vem tomando atualmente,
mas com muita metáfora e poesia (pense na dança erótica das criaturas virtuais).
Existe até espaço para uma alusão a videoclipezação do cinema, com um intervalo
musical no melhor estilo plano sequência a la Beirut e Banda mais bonita da cidade.
Subrepticiamente entendo que o filme
funcione como uma ode ao ofício dos atores. Denis Lavant
revela-se absolutamente genial na construção do Sr. Oscar e de seus tipos, nos
dando alguma dimensão do quão elaborado deve ser o trabalho desses
profissionais na composição de seus personagens. Neste sentido, fica evidente o
quanto a atuação é uma grande obra de arte a depender da inspiração e talento
do artista que a desempenhe.
Ainda, a película também serve, é claro, a belas
reflexões sobre as vidas das pessoas “fora da tela”. Desde questões como o
excesso de “compromissos” da vida moderna até o sentido “da coisa toda”, cada
fotograma abrange uma miríade de possibilidades interpretativas (pense nas
lápides do cemitério de Pére Lachaise com a inusitada inscrição “Visite meu
website” nos epitáfios). E é extremamente inspirador que o camaleônico Sr.
Oscar responda, quando indagado sobre o porquê de levar a frente aquela tarefa
que se revela tão extenuante, que a sua motivação maior é a “beleza do gesto”.
Dá o que pensar, não é verdade?