segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Holy Motors


Quando eu era criança, cheguei a pensar que as pessoas que apareciam na televisão, viviam dentro dela e que o tubo de imagem era uma grande lente de aumento para um mundo estranhamente pequeno e dividido em canais, que a gente mudava girando o seletor. Não saberia explicar com mais detalhes o mecanismo que minha imaginação infantil concebeu para entender o fenômeno da televisão, mas lembro que algumas vezes cheguei a investigar pelas pequenas frestas de ventilação que havia atrás do aparelho, a possibilidade de pegar algumas daquelas mini-pessoas emprestadas para fazerem companhia a mim e aos meus bonecos do He-man e da Liga da Justiça nas nossas aventuras.

Outra fantasia infantil, creio que pouco depois de eu já ter uma certa noção de como as coisas funcionavam na televisão, era a de achar que a minha vida era um filme, ou até uma novela. Ficava tentando imaginar as pessoas assistindo a minha vida, o que elas pensavam, e que nesse universo paralelo eu deveria ser algum ator famoso e que deveria ser legal passar uns tempos por lá, para dar uns autógrafos, ser chamado para um programa de entrevistas, essas coisas. É claro que eu devia ter alguma noção de que era tudo fantasia porque nunca fiquei procurando a câmera, mas fiquei lembrando desses devaneios infantis quando fui assistir “Holy Motors” esse fim de semana.

Não, não é um filme fácil se se considerar a tendência da produção cinematográfica mainstream atual de não instigar o espectador a sair de sua zona de acomodação e participar da construção da obra, oferecendo de bandeja respostas e interpretações. No mínimo, a obra é uma baita oportunidade de aceitar ser desafiado a exercitar outras instâncias de nós mesmos, que o cinema sempre pode atingir, mas muitas vezes não o faz ou o faz pouco, creio que por motivos financeiros principalmente. E esta experiência, por razões humanas, deveriam ser mais acessíveis, mas eu divago, claro.

As cenas iniciais do filme acompanham um sujeito que dorme aparentemente em um quarto de hotel e que, em um dado momento, acorda intrigado com algo que aparentemente não suspeita o que seja até resolver investigar uma das paredes do quarto, decorada com papéis de parede com motivos florestais. Aí, nos damos conta, junto com ele, de que um de seus dedos é uma espécie de implante metálico que, na verdade, é uma chave para uma pequena fechadura oculta nesta parede, que, aberta, leva a um antigo cinema. O sujeito entra e se depara com um público assistindo a uma película enquanto uma criança caminha por um dos corredores, esgueirada por um imenso cão negro.

Dali, corta para um magnata saindo placidamente de sua mansão cinematográfica para o trabalho, de manhã, adentrando numa limousine e, lá dentro, após alguns telefonemas, aparentemente de negócios, começa a pentear uma sugestiva peruca de fios prateados. A limousine para às margens do Sena (o filme se passa na sempre majestosa Paris) e, de lá, o sujeito sai caracterizado como uma pedinte idosa (de cabelos prateados) e vai esmolar, salvo engano, na Pont Alexander.

Que tal? Pareceu confuso? Daí em diante o que vemos é um dia na vida dessa figura trafegando por Paris em sua limousine, assumindo temporariamente os personagens mais diversos, desde um senhor idoso à beira da morte, um assassino, e até uma figura grotesca que circula por esgotos e cemitérios e come dedos de mocinhas desavisadas. Tudo, claro, filmado com muito(s) estilo(s) e inspiração. Aos poucos, vamos nos dando conta que provavelmente aquele é o universo das pessoas “que vivem dentro da tela” e, por isso, me remeteram às minhas aventuras imaginárias da infância. Só que em uma versão adulta e estilizada, claro.

Entendo que o mote principal do filme é uma grande homenagem ao cinema, apresentando um elegante mosaico de personagens e estilos cinematográficos, além de certamente fazer diversas provocações críticas às diretrizes que a sétima arte vem tomando atualmente, mas com muita metáfora e poesia (pense na dança erótica das criaturas virtuais). Existe até espaço para uma alusão a videoclipezação do cinema, com um intervalo musical no melhor estilo plano sequência a la Beirut e Banda mais bonita da cidade.

Subrepticiamente entendo que o filme funcione como uma ode ao ofício dos atores. Denis Lavant revela-se absolutamente genial na construção do Sr. Oscar e de seus tipos, nos dando alguma dimensão do quão elaborado deve ser o trabalho desses profissionais na composição de seus personagens. Neste sentido, fica evidente o quanto a atuação é uma grande obra de arte a depender da inspiração e talento do artista que a desempenhe.

Ainda, a película também serve, é claro, a belas reflexões sobre as vidas das pessoas “fora da tela”. Desde questões como o excesso de “compromissos” da vida moderna até o sentido “da coisa toda”, cada fotograma abrange uma miríade de possibilidades interpretativas (pense nas lápides do cemitério de Pére Lachaise com a inusitada inscrição “Visite meu website” nos epitáfios). E é extremamente inspirador que o camaleônico Sr. Oscar responda, quando indagado sobre o porquê de levar a frente aquela tarefa que se revela tão extenuante, que a sua motivação maior é a “beleza do gesto”. Dá o que pensar, não é verdade?   

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