quinta-feira, 8 de março de 2012

ou catador de poesia (ou ainda: Salve o poeta Manoel de Barros!)

I. Matéria de Poesia
I.

Todas as coisas cujos valores podem ser 
disputados no cuspe à distância 
servem para poesia.

O homem que possui um pente 
e uma árvore 
serve para a poesia.

Terreno de 10 x 20, sujo de mato —  os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia

As coisas que levam a nada 
têm grande importância.

Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar 
na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
por exemplo, pedras que cheiram 
água, homens 
que atravessam períodos de árvore, 
se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma 
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde 
dos pássaros, 
serve para poesia.

As coisas que os líquenes comem
      — sapatos, adjetivos — 
têm muita importância para os pulmões
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia—

Os loucos de água e estandarte
servem demais

O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso

Tudo que explique 
   o alicate cremoso
   e o lodo das estrelas
serve demais da conta

Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique
   a lagartixa da esteira
   e a laminação dos sabiás
é muito importante para poesia

O que é bom para o lixo é bom para a poesia

Importante sobremaneira e a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
   tem muitas repercussões
com um algibe entupido de silêncio
   sabe a destroços

As coisas jogadas fora
têm grande importância
— como um homem jogado fora

Aliás é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens de poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho.




Manoel de Barros


(Barros, Manoel de. Poesia Completa. São Paulo. Editora Leya. 2010)

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