segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Sobre "Nosso Lar"


Como já declarei algumas vezes, sou espírita. Talvez por minha família praticamente toda também sê-lo. Talvez porque escolhi. Talvez por que tinha que ser assim. Fato é que a Doutrina Espírita, trazida pelos espíritos e codificada e organizada pelo pesquisador e acadêmico Hippolyte Leon Denizard Rivail (também conhecido por Allan Kardec) em meados do século XIX, até hoje me serve como fonte de inspiração para muitas das minhas questões filosóficas e religiosas devido a sua lógica e coesão interna tão ricas quanto robustas, bem como pelas provas que cada vez mais venho tendo de sua plausibilidade.
Dito isto, advirto desde já, que meus comentários sobre o filme “Nosso Lar” obviamente poderão pecar pela parcialidade dada a grande relação desta obra com o Espiritismo, doutrina que abraço.
A rigor, “Nosso Lar” não é baseado na obra de Chico Xavier, como traz a publicidade do filme, mas na do espírito André Luiz que, através do médium, escreveu, entre as décadas de 40 e 60, uma série de 13 livros intitulada “A vida no mundo espiritual”. Chico Xavier era apenas o instrumento, motivo pelo qual, inclusive, doava os direitos autorais destas obras para entidades de beneficência. Esta série narra as experiências do mencionado espírito no plano espiritual e tem em “Nosso Lar” o seu primeiro volume. É um livro de imensa relevância para a Doutrina Espírita pois, lançado em 1943, veio aprofundar tudo o que havia sido dito cerca de 80 anos antes, nos trabalhos de Allan Kardec.
O filme inicia-se com a emblemática imagem que estampa o pôster de divulgação, de um homem frente a uma imensa muralha de pedra onde parece haver uma porta de entrada bloqueada. A câmera volta-se, então, para o céu e o nome “Nosso Lar” surge no firmamento realçado por uma trilha sonora impactante para, após, mergulhar em uma espécie de subsolo.
Em uma paisagem sombria e inóspita, um homem acorda deitado chafurdando na lama. Uma voz em off, se encarrega de nos inteirar do que está ocorrendo. É André Luiz acordando numa região purgatorial chamada Umbral, narrando sua experiência.
Tenho uma particular rejeição com narrações em off. Salvo quando utilizada dentro de contextos muito específicos, como nos noir, por exemplo, o que não é o caso. Este recurso, na maioria das vezes, além de revelar uma possível falta de confiança do diretor e/ou roteirista na inteligência do espectador, soa como um excesso que, inclusive, pode dificultar a imersão na trama, que foi o que aconteceu comigo. Muito embora a recriação do Umbral esteja extremamente fiel ao que imaginei quando li o livro, com aquele falatório todo, senti alguma dificuldade em me sentir lá, o que é o grande barato da experiência cinematográfica (não que eu realmente quisesse me sentir no Umbral, é só uma observação crítica, ok?).
Por outro lado, é compreensível esta opção do diretor tendo em vista o didatismo característico da própria obra literária, que tem como objetivo principal explicar o funcionamento do universo que apresenta. Adicione-se ainda que, após, no decorrer do filme, tal recurso não mais servirá para explicar fatos (tal encargo caberá aos habitantes de Nosso Lar, sobretudo a Lísias), mas para que André compartilhe com o espectador suas elucubrações a respeito da visão de mundo que passa a adotar.
Entretanto se este recurso pode ser visto como pouco engenhoso, o mesmo não se pode dizer dos utilizados pelo diretor (ou montador?) para contar, em breves minutos, a história do personagem antes de sua morte. Encadeando suas lembranças às agruras sofridas no Umbral, há inegável habilidade nos movimentos de câmera e na montagem, que conferem certa agilidade à narrativa acerca da personalidade de André Luiz, fazendo-nos compartilhar de sua confusão mental oscilando entre seu estado atual e suas recordações.
Outro ponto alto da produção são seus efeitos visuais. O livro “Nosso Lar” causou inquietação entre os espíritas da década de 40 por trazer uma concepção do além um tanto quanto inovadora. Principalmente no que tange ao desenvolvimento tecnológico. Além do clássico aeróbus, meio de transporte público assemelhado a um ônibus aéreo, mencionado capítulo 10 do livro, há também a referência a um aparelho de comunicação muito próximo à televisão (capítulos 23 e 24). Graças a essas informações, até hoje há, no Espiritismo, correntes sustentando que André Luiz seria um espírito mistificador que se aproveitou da boa-fé de Chico Xavier para publicar seus livros e que tudo ali não passa de uma grande mentira.
Desta forma, tendo em vista as descrições entabuladas no livro, a produção de arte e os efeitos especiais são de primeiríssima qualidade. O Umbral e seus habitantes estão muito próximos daquilo que imaginei e Nosso Lar é um presente para os olhos com suas cores, sol perene e arquitetura leve e sinuosa, quase etérea. Qualquer referência a Lúcio Costa e Niemeyer não são mera coincidência tendo em vista que Brasília e aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, foram algumas das locações utilizadas como base. Provavelmente para esta área foi destinada grande parte dos cerca de 20 milhões de reais orçados pela produção, o que a coloca entre as mais caras realizadas no país até então.
A fotografia de Ueli Steiger revela-se um tanto óbvia privilegiando as cores e a luminosidade quando em Nosso Lar e as sombras sinistras quando no Umbral, além de utilizar-se de sépia, ao mostrar as recordações do personagem. E a trilha sonora de Philip Glass, bastante inspirada como sempre, pode soar um tanto excessiva para os mais exigentes (como soou para mim).
Renato Prieto surge como uma feliz revelação emprestando seu corpo ao Dr. André Luiz. Se, no início é o homem sisudo que foi na Terra, confuso com a nova realidade que se lhe descortina, ao final é um colaborador de Nosso Lar de semblante sereno e jovial, já mais consciente da natureza divina da vida.
O núcleo principal é ainda composto pelo enfermeiro Lísias, interpretado com doçura por Fernando Alves Pinto e por Rosanne Mulholland que, com um vigor inesperado, interpreta a rebelde Eloísa, personagem que faz interessante contraponto a André Luiz, uma vez que enfrenta maiores dificuldades em enfrentar a sua nova realidade. O filme conta ainda com participações especiais de atores conhecidos como Ana Rosa, na pele (ou seria perispírito?) de D. Laura, Othon Bastos, como o Governador de Nosso Lar e Paulo Goulart, como Genésio.
Werner Schünemann faz um Emmanuel quase que diametralmente oposto ao de André Dias em “Chico Xavier – o filme”. Altivo e formal em sua postura de senador romano, o mentor de Chico Xavier, aqui, mostra-se bem menos austero do que na outra produção. O curioso é que Emmanuel não aparece como personagem no livro, apenas prefaciou-o na qualidade de organizador do trabalho mediúnico de Chico, apresentando o “Novo amigo” André Luiz. Contudo, enquanto espírita, considerei bastante oportuna a inclusão por oferecer uma boa é plausível idéia de como se dá o trabalho de um guia espiritual, mesmo sendo uma trama originada única e exclusivamente na imaginação do roteirista que, neste caso, também é o diretor.
A direção de Wagner de Assis é bastante sensível e simples. É eficiente ao criar momentos de emoção como aqueles em que André Luiz visita sua família na Terra, mas talvez seja pouco criativa ao representar certas passagens como aquela que envolve o restabelecimento um tanto súbito demais de um certo personagem no fim da história graças a atuação do médico espiritual.
“Nosso Lar” é um filme (como o livro) que fala de esperança. Embora a idéia de vida após a morte não seja a maior novidade do mundo, é bastante intrigante a proposta que lança, uma vez que inova ao tratar deste universo, afirmando não só esta realidade, como revelando a existência de cidades espirituais e ainda mostrando que não há tanta diferença assim entre o cotidiano de uma cidade terrestre e o de uma cidade espiritual. A grande diferença entre umas e outras seria a ética em que as relações humanas se fundamentam em cada qual.
Algumas pessoas com quem conversei, inclusive espíritas, reclamaram que parece acontecer pouca coisa no filme. Estou convencido de que provavelmente esta impressão se deve a natureza intimista da trama principal. Narra a história de um homem em uma experiência espiritual (aqui no sentido de experiência íntima, essencial) em que há uma reformulação total de sua maneira de encarar a vida. Lembra-me a trajetória de personagens como a Dora, de “Central do Brasil” e Chris McCandless, de “Na natureza selvagem”. Não é tão importante o que se sucede no exterior, mas o que vai no interior do personagem. A diferença é que aqui o pano de fundo é, vá lá, "sobrenatural", muito embora os dramas enfrentados pelo personagem sejam demasiado humanos. Entretanto reconheço que talvez por eu conhecer bastante a obra original, tal questão tenha ficado mais perceptível para mim.
Assim, é emblemática a opção do diretor de encerrar o longa com a imagem inicial de André Luiz à frente da enigmática muralha de pedra. E se um dia formos nós em seu lugar? Qual terá sido nossa trajetória até lá? Estaremos preparados?

Leia também: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=846848

4 comentários:

  1. Só não entendi quando você disse que por ter uma concepção inovadora e tal, dizem que tudo ali não passa de uma mentira. O que isso tem a ver?

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  2. Na Codificação Espírita de Kardec ("O Livros dos Espíritos", "O Livro dos Médiuns", "O Evangelho Segundo o Espiritismo", "O Céu e o Inferno" e "A Gênese") não há previsão explícita quanto a existência de cidades espirituais. Sendo que em alguns pontos os espíritos chegam a dizer que a idéia de jardins e paraísos no plano espiritual são invencionices de espíritos pouco evoluídos e até mentirosos. Desta forma a revelação de André Luiz chegou gerando muitas suspeitas. Isso sem falar na religião católica e na sua doutrina de céu, inferno e purgatório.

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  3. Gabriel,
    Domingo consegui assistir a última sessao no Sao Luiz. Muitos sairam com aquele pensamento que o filme nao teve muita coisa. No meu caso, achei o filme maravilhoso. Na minha modesta opiniao, passou a mensagem certa. Fiquei impressionado com a riqueza de detalhes. Alem disso passou exatamente o que eu imaginava sobre tudo. Por varias vezes o filme emocionou.
    Abracos de seu primo
    Rodrigo

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  4. Separando o filme sentido do filme assistido a gente pode ter inúmeras opiniões... Eu realmente não sei explicar o tanto de coisa que senti. É uma mistura de emoções por ver a nossa Doutrina tão melhor e mais divulgada, ver tantos amigos lotando uma sala de cinema, tanta gente buscando assistir por mera curiosidade e saindo daquele escurinho maravilhoso com a sensação de futuro certo. Eu chorei tantas vezes, por várias razões e todas convergindo e resumindo numa só frase: "O mundo precisa de histórias felizes"

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