quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O Festival e eu (II)

Acompanho o Festival há alguns anos e sempre considerei escolher filmes na extensa programação divulgada uma tarefa difícil. Que filmes priorizar? Os blockbuster que depois estrearão em circuito de qualquer forma? Os obscuros de origem duvidosa, mas com sinopse interessante e prêmios internacionais na bagagem? Nessa escolha de Sofia eu acabava tentando me dividir um pouco entre uns e outros, e quando me dava conta, eu tinha visto mesmo os blockbuster de circuitão, salvo raras exceções.
Este ano está sendo o primeiro em que resolvi ousar, confiando mais na minha intuição. A neura de que só eu estou perdendo os melhores filmes do festival e que todo mundo está super antenado e super por dentro das boas, continua aqui, mas estou conseguindo controlá-la pesquisando um pouco aqui e ali, ouvindo opiniões, por que ninguém é de ferro, e definitivamente não é a minha intuição exatamente o que há de mais infalível na face na Terra.
Comecei o dia de ontem com BURACO NEGRO (L´autre monde, Gilles Marchand, França/Bélgica, 2009). Foi tiro no escuro (ops!) total. A sinopse na internet parecia interessante e as fotos de divulgação razoáveis (muito embora eu tenha aprendido que nem sempre as fotos de divulgação do site do festival seguem o padrão da fotografia do filme, o que já me acarretou algumas decepções). Escolhido o filme pela capa, lá fui eu conferir a precisão do meu palpite.
Logo na seqüência inicial, uma cena noturna em uma realidade computadorizada em que uma mulher se atira do alto de um prédio cortando, numa espécie de raccord, para uns rapazes pulando na água de um trampolim num dia ensolarado no “mundo real” (tudo isso ao som de uma trilha sonora que me remeteu a Angelo Badalamenti e seus trabalhos com David Lynch), pensei: promete! Impossível não ficar seduzido, conjecturando sobre a relação entre os dois universos com uma introdução tão impactante. Meu palpite estava funcionando.
A partir daí somos introduzidos à trama principal: Gaspard, jovem francês de férias no sul da França descobre um celular perdido e, instigado pela namorada, Marion, resolve investigar a vida de sua bela e misteriosa proprietária, Audrey, uma moça com tendência suicidas. Permeando tudo, há o jogo de realidade virtual “Black Hole”.
Misturando computação gráfica com película e alternando eficientemente as duas realidades, o filme funciona muito bem na construção de um universo que vai se mostrando cada vez mais instigante e perigoso. A bela Louise Bourgoin encarna uma irresistível femme fatale e o mundo virtual do tal jogo, além de belissimamente construído, evoca claramente o noir, o que me remeteu inúmeras vezes a “Sin City” e a “Mulholland Drive” – este especificamente numa cena em que um dos avatares canta um determinada música, que me lembrou muito o surreal “Club Silencio”.
Entretanto, todo esse clima de mistério tão meticulosamente construído é bastante comprometido na parte final devido a falhas do roteiro. Algumas pontas ficam soltas, as soluções para as tramas são fracas e personagens antes aparentemente complexos revelam uma frustrante superficialidade. Contudo, ainda considero uma experiência válida.
Depois, por recomendação, fui assistir LÍBANO (Lebanon, Samuel Maoz, Alemanha/Israel, 2009), vencedor do Leão de Ouro em Veneza em 2009. O filme se passa quase que inteiramente dentro de um tanque de guerra (o “quase que" se deve aos segundos iniciais e finais) durante a guerra do Líbano, de 1982, acompanhando a rotina dos quatro soldados israelenses que o tripulam.
Uma das coisas que eu tinha me esquecido a respeito do Festival do Rio é do protagonismo de algumas platéias de alguns filmes. Um tipo de comportamento também verificável nas lendárias maratonas de cinema do Cine Odeon. Lá pelas tantas o comandante da operação mata um civil a sangue frio (sim, o filme se passa todo dentro do tanque, mas o mundo exterior é engenhosamente mostrado do ponto de vista da mira do canhão). Eis que de repente, um senhor exalta-se na platéia e se põe a bradar em alto e bom som: Nazista! Nazista! Pensei: Ou ele não entendeu que a intenção da cena é justamente mostrar os absurdos da guerra (numa postura muito próxima daqueles que acham o nosso “Tropa de Elite” fascista), ou ele queria mostrar sua indignação contra o ato isolado chamando o soldado israelense justamente pela alcunha de seus algozes históricos devido a semelhança dos modus operandi. Eis que então, com razão, algumas pessoas protestaram mandando-o calar a boca, o senhor, então, não se fazendo de rogado, devolveu: Sionistas! Sionistas!. Aí percebi que a bronca dele era com os judeus mesmo e, mais ainda, que ele não tinha se dado conta que o resto das pessoas queria terminar de ver o filme sem ser importunado. O impasse se resolveu logo em seguida, creio que após alguma ameaça mais séria de algum outro espectador mais indignado. No mais, é um filme de guerra que, como todo filme do gênero, ressalta todo o absurdo e toda desumanidade da guerra, colocando seus personagens em uma situação limite tanto física quanto psicológica. O diferencial, aqui, portanto, é justamente a sua proposta claustrofóbica de centralizar toda a ação dentro de um tanque de forma que quase dá para sentir o cheiro de urina e sangue que se entranha lá dentro.
Pelos meus planos, LÍBANO seria o meu último filme do dia, só que descobri que minutos após o final de sua sessão, no Espaço de Cinema (eu vi LÍBANO no Estação Botafogo, quem conhece sabe da proximidade), passaria o filme 2012: TEMPO DE MUDANÇA (2012: Time for changes, João Amorim, EUA/Brasil/França/México/Suíça, 2010), um documentário que eu tinha visto que teria depoimentos do Sting, do David Lynch (tô gostando da idéia de citá-lo duas vezes nesse post), da Ellen Page e do Gilberto Gil.
Imaginem um filme que tenta relacionar calendário maia, experiências psicodélicas, meditação, e meio ambiente. Não, não é um filme de apologia à maconha, embora tenha ares de filme “bicho-grilo”. Na verdade, a parte da meditação, das experiências psicodélicas e do calendário maia são mais um ponto de partida para uma reflexão acerca da relação do ser humano consigo próprio e com o ambiente em que vive. Indo na contramão das perspectivas apocalípticas (a propósito “apocalipse” é uma palavra de origem grega que, na verdade, significa “revelar, levantar o véu”), com apoio em depoimentos de descendentes diretos dos maias e de outras nações indígenas antigas, o filme sustenta, que, na verdade, o fato de o calendário maia terminar em 2012 não significa que o mundo irá acabar, mas sim a inauguração de uma nova era para a humanidade. A tese do documentário, se entendi bem, parece ser a de Daniel Pinchbeck, figura simpática que apresenta o documentário e autor de livros como “Breaking Open the Head: A Psychedelic Journey into the Heart of Contemporary Shamanism” e “2012: The Return of Quetzalcoatl”, que afirma que esta nova era refere-se justamente a uma maior espiritualização das pessoas, o que se refletirá em uma melhor relação do homem com a natureza, na medida em que proporcionará uma mudança nos valores, na política e na economia. Não crê em uma solução mágica, mas em atitude. O filme não se atém a discutir teses e teorias proféticas e mostra inúmeras comunidades auto-sustentáveis além de apresentar inúmeras soluções naturais que vem sendo descobertas e já utilizadas para problemas contemporâneos como vazamentos de óleo e poluição das águas e é, sim, um convite para repensarmos a nossa postura perante o mundo em que vivemos. É panfletário sem ser muito incisivo, parecendo se preocupar apenas em plantar boas idéias e reflexões.
Caramba! Ficou grande!

2 comentários:

  1. Não entendi nada dessa briga, eu tava lá na frente e só ouvi uns "nazistas" de vez em quando. Se tivesse ouvido "sionistas" teria rido muito. Gente louca!

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  2. Esse rapaz tem uma memória bizarra! Vi "Buraco Negro" e ler seus comentário me faz revisitar o filme com grande riqueza dos bons detalhes. De modo geral, me agrada muito a maneira como você conduz o leitor pela trama. É inteligente, pois sabe evocar elementos chaves sem macular informações importantes que dali poderiam surgir.
    É engraçado, mas conseguistes fazer dessa leitura, que quase parece técnica, um momento nostálgico.

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