segunda-feira, 15 de novembro de 2010

As cartas psicografadas por Chico Xavier


Conta-se nos arraiais espíritas que, certa vez, o ilustre Bezerra de Menezes estava proferindo uma conferência, salvo engano na Federação Espírita Brasileira no Rio de Janeiro, quando foi interrompido por uma pessoa da plateia que, dizendo-se materialista, desafiou-o a participar de um debate em que, desde já, comprometia-se o desafiante a desmascarar as fraudes do Espiritismo. Bezerra, então, calmamente, teria aceitado o desafio, mas impôs uma condição: que o sujeito levasse ao debate ao menos uma pessoa entre "aqueles que o Materialismo tenha socorrido no mundo". Diz-se que o sujeito abaixou a cabeça e não contra-argumentou.
Esta passagem normalmente é utilizada para ressaltar a robustez dos princípios da Doutrina Espírita, como se o mero fato de a mesma confortar certas inquietações humanas ancestrais (medo da morte, saudade dos entes queridos que morreram) a conferisse status de verdade absoluta. Diga-se que o próprio Kardec se utiliza desta técnica argumentativa em sua obra “O céu e o inferno – ou Justiça Divina segundo o Espiritismo” quando, no capítulo I, entitulado “O porvir e o nada”, sustenta, em síntese, que a teoria da individualidade antes e depois da morte é mais apropriada do que a teoria do nada e a da absorção por que mais confortante. Entretanto, a mesma razão tão enaltecida por Kardec em seus escritos nos inclina rapidamente a perceber que algo não é verdadeiro pelo simples fato de ser bom. Creio tratar-se de uma falha argumentativa conhecida como petitio principii, que é a que ocorre quando se pressupõe como verdadeiro no argumento justamente o princípio que deveria ser provado pelo mesmo. Se não houver vida após a morte, o fato de alguém acreditar nesta teoria pelo simples fato de ela ser reconfortante não a fará verdadeira. Milhares de crianças acreditam em Papai Noel, entretanto, pelo que se saiba, infelizmente, o bom velhinho não existe. Eu creio na veracidade da Doutrina Espírita muito mais pelas minhas experiências de vida e meus estudos a respeito do que por simplesmente ser confortado por ela. Entretanto, que seus postulados confortam, isso é indubitável. E é justamente este aspecto que o filme AS CARTAS PSICOGRAFADAS POR CHICO XAVIER busca enfocar. O filme não tem por objetivo atestar a veracidade ou falsidade das cartas, muito menos fazer proselitismo ou atacar a Doutrina Espírita, mas simplesmente mostrar os dramas humanos por trás das famigeradas missivas. Basicamente, é um filme sobre memória, saudade e afeto. Sobre mães e filhos, amor e perda. Nesse sentido, é emblemática a opção da diretora por, em algumas cenas, ler em off as cartas dos filhos mortos tendo por imagem o local (poltrona, cadeira, sofá) onde os pais deram seus depoimentos, só que vazios. Além de ambientar o espectador no espaço do entrevistado, aproximando-os, provoca uma reflexão acerca da dicotomia ausência/presença. Enquanto os pais estão, os filhos não estão e vice-versa. Em outros momentos ela opta por filmar os manuscritos originais, que são manuseados pelas próprias mães destinatárias das cartas, o que nos remete não só ao carinho com que as mesmas guardam os escritos (a maioria deles recebidos há quase trinta anos), mas principalmente à dor que sentem pela morte de seus filhos. Sim, mesmo depois de quase trinta anos, fica nítido o quão traumática foi a experiência para cada uma delas. As mensagens, é bem verdade, tem muito em comum. A maioria dos filhos demonstra preocupação com o estado emocional das mães, dizem das belezas indizíveis dos lugares onde agora se encontram (dois deles demonstram vontade de desenhar para expressar o que as palavras não dizem) e fazem belas e emocionadas elucubrações filosóficas sobre a vida e a morte. Alguns podem torcer o nariz para as inclinações poéticas dos remetentes, mas isso me levou a pensar em o que eu escreveria para a minha mãe caso estivesse morto e a visse sofrendo. Sem dúvida, eu também importunaria o Chico para que, em vez de uma carta, eu pudesse fazer uma pintura para ela.
Os missivistas aproveitam também para mandarem recados específicos para um e outro parente e darem notícias de outros que já estavam do lado de lá, o que é bastante impressionante, uma vez que todas as mães são unânimes em afirmar que não havia como o médium ter acesso àquelas informações.
É bem verdade que se pode questionar sobre a real eficácia terapêutica das cartas. Muitas daquelas senhoras não se contentaram em receber somente uma carta e somente através de Chico Xavier, o que pode evidenciar justamente um apego cada vez maior à perda e ao luto. Entretanto, não tenho cabedal para ficar julgando se umas dores são maiores que as outras (principalmente a dor dar perda de um filho), e muito menos para elucubrar sobre qual seria o efeito terapêutico mais desejável. No fim das contas, o que fica nítido é que provavelmente sem aquelas cartas tudo poderia ter sido muito pior para elas.
Cristiana Grumbach faz um trabalho bastante delicado na direção, além de revelar-se uma entrevistadora sensível e atenta, com o mesmo respeito ao entrevistado e ao momento da entrevista de seu indubitável mestre Eduardo Coutinho.
No folder de divulgação do documentário, Cristiana publicou um belo texto que é bastante revelador quanto à alma do filme, que passo a reproduzir:
“Esse não é um filme autobiográfico, não participo dele na condição de alguém que viveu história semelhante. Tiver perdas de pessoas queridas, como quase todos, mas essas histórias não fazem parte do filme.
“Ao mesmo tempo, nesse filme está o encontro com a mãe que me tornei ao longo de sua realização, com ele estou aprendendo esse amoroso ofício. E dedico o filme à minha mãe, alguém que me fez pensar sobre a vida e a morte a cada instante.
“Aprendendo a ser mãe, escrevendo uma nova história com a minha mãe que hoje vive em mim e em meus filhos – assim é que este filme me fala. E com ele quero ligar os elos que nos fazem corrente de vida, sem ponto. Cristiana Grumbach”

Um comentário:

  1. Lindo lindo lindo. Grande vontade de ver depois de ler isso tudo.
    Pena não estar tão disseminado. Boca a boca já!
    Beijo, chu

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